MAIAAlexandreda CadernosFGVDireitoRio-Vol 1 - Análise do Comportamento (2024)

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Por uma história das imagens da normatividade do direito. In: BARBOSA,

Samuel; CAMPOS, Ricardo; FORTES, Pedro (coords.). Teorias Contemporâneas

do Direito: o Direito e as incerteza...

Chapter · December 2016

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Alexandre da Maia

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Teorias Contemporâneas do Direito 1

CADERNOS FGV DIREITO RIO

Volume I

Pedro Fortes

Coordenador da Coleção

TEORIAS

CONTEMPORÂNEAS

DO DIREITO

O Direito e

as Incertezas Normativas

Pedro Fortes / Ricardo Campos / Samuel Barbosa (Coords.) 2

Visite nossos sites na Internet

www.jurua.com.br e

www.editorialjurua.com

e-mail: editora@jurua.com.br

ISBN: 978-85-362-6614-5

Brasil – Av. Munhoz da Rocha, 143 – Juvevê – Fone: (41) 4009-3900

Fax: (41) 3252-1311 – CEP: 80.030-475 – Curitiba – Paraná – Brasil

Europa – Rua General Torres, 1.220 – Lojas 15 e 16 – Fone: (351) 223 710 600 –

Centro Comercial D’Ouro – 4400-096 – Vila Nova de Gaia/Porto – Portugal

Editor: José Ernani de Carvalho Pacheco

Teorias contemporâneas do direito: o direito e as

T314 incertezas normativas./ coordenação Pedro Fortes,

Ricardo Campos, Samuel Barbosa./ 1ª edição./ Curitiba:

Juruá, 2016.

338 p. – v. 1

Vários colaboradores

1. Direito – Teoria. I. Fortes, Pedro (coord.). II. Cam-

pos, Ricardo (coord.). III. Barbosa, Samuel (coord.).

CDD 340.1(22.ed)

CDU 340

Teorias Contemporâneas do Direito 3

Pedro Fortes

Ricardo Campos

Samuel Barbosa

Coordenadores

TEORIAS

CONTEMPORÂNEAS

DO DIREITO

O Direito e

as Incertezas Normativas

Colaboradores:

Alexandre da Maia

Fábio P. Shecaira

Fernando Leal

Gabriel Lacerda

Gunther Teubner

Ino Augsberg

Juliano Maranhão

Karl-Heinz Ladeur

Marcelo Neves

Noel Struchiner

Pedro Fortes

Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco

Ricardo Campos

Samuel Barbosa

Thomas Bustamante

Thomas Vesting

Úrsula S. C. C. Vasconcellos

Curitiba

Juruá Editora

2016

Pedro Fortes / Ricardo Campos / Samuel Barbosa (Coords.) 4

Teorias Contemporâneas do Direito 5

APRESENTAÇÃO

A série Cadernos FGV DIREITO RIO acompanha a escola des-

de seu início como um espaço privilegiado de reflexão sobre ensino jurí-

dico. Desde a edição inaugural de 2005 – quando se publicou seu projeto

pedagógico e um estudo do professor Roberto Mangabeira Unger sobre

quais deveriam ser as características básicas de uma nova faculdade de

direito no Brasil – as publicações têm trazido uma coleção de artigos,

pareceres e relatórios sobre diversas experiências acadêmicas marcantes

da trajetória da FGV DIREITO RIO.

Assim, os cadernos têm funcionado como fórum de discussão

teórica e prática sobre perspectivas pedagógicas, a saber, estratégia de

ensino, estrutura das aulas e composição do currículo. Tem-se, ainda,

feito o registro histórico de práticas acadêmicas diversas, tais como a

construção da disciplina Teoria do Direito Constitucional, de uma práti-

ca jurídica qualificada e do ensino do direito através do cinema ou da

literatura. Edições foram especialmente dedicadas a certas metodologias

específicas, tais como o estudo de caso – método participativo caracterís-

tico da proposta inovadora de ensino da escola – e a pesquisa jurídica

etnográfica – sendo também a pesquisa empírica uma marca registrada

da FGV DIREITO RIO. Outros exemplares, por sua vez, resgataram

textos históricos sobre ensino jurídico, brindando nossos leitores com

autores clássicos como Alfredo Lamy Filho, Gilberto Freyre e San Tiago

Dantas, por exemplo. Funcionando dentro do espírito da escola como um

espaço livre de debates e não hierarquizado, desde um artigo sobre a

simplificação da linguagem jurídica em 2006 de autoria de João Zacha-

rias de Sá, a série já publicou dezenas de textos de nossos alunos com

diversas reflexões sobre variados assuntos. Recentes volumes exploraram

os temas da Globalização do ensino jurídico e Formação da advocacia

contemporânea, contendo trabalhos inéditos de renomados autores in-

ternacionais como Helena Alviar, Bryant Garth e Rogelio Perez-

-Perdomo preparados especialmente para a nossa série, além de ensaios

originais de importantes professores brasileiros. Além disso, nossos dois

Pedro Fortes 6

últimos volumes trouxeram uma série de experiências acadêmicas inova-

doras com Ensino Jurídico, Cultura Pop e Cultura Clássica, celebrando

o pioneirismo das escolas FGV DIREITO RIO e FGV DIREITO SP com

o tema. O volume atual discute diversas perspectivas contemporâneas

sobre a teoria do direito, aprofundando o debate acadêmico sobre a in-

certeza normativa e estabelecendo um rico diálogo entre professores e

pesquisadores do Brasil e da Alemanha a respeito não apenas deste te-

ma, mas também da unidade, integridade e interdisciplinaridade do di-

reito.

Em meio a esta pluralidade de temas e autores, nossos cader-

nos pretendem combinar o espírito ensaístico típico dos cahiers france-

ses com o rigor intelectual característico dos livros acadêmicos. Por

compartilharmos questões comuns do cotidiano dos professores de direi-

to, resolvemos disponibilizar amplamente e de forma gratuita a série

Cadernos FGV DIREITO RIO para a comunidade acadêmica lusófona.

Além disso, convidamos professores de outras instituições acadêmicas

nacionais

,

libertando-o das jurisdições locais e reorganizando-o, em um nível co-

mum mais amplo, como um meio de coordenação de ações entre diferen-

tes grupos comunitários. Parafraseando Monika Dommann: não apenas

na área da música, mas também o direito do século XIX combinou quali-

dades progressistas com o abandono da tradição e privilegiou o conheci-

mento escrito em detrimento daquele transmitido oralmente44.

Quando atentamos para esse contexto histórico, logo torna-se

claro o motivo pelo qual não devemos fazer uma leitura deliberadamen-

te equivocada da cultura jurídica liberal das constituições escritas e dos

manuais de direito. É verdade que, em geral, a lei é imaginada como a

expressão de uma vontade soberana de súditos respeitáveis. A vontade

do soberano pode, entretanto, articular-se apenas por meio de textos

jurídicos escritos e, desse modo, torna-se objetivo: o direito passa a ser

genérico, ou seja, não instrumental, não formulado ou pautado por me-

tas específicas45; e por meio da sua articulação em linguagem escrita,

ele permanece em contato com a reserva acumulada de experiência real

e com a semântica padrão do discurso cotidiano. Além disso, nessa rede

intertextual, não apenas supõe-se que o legislador seja um súdito respei-

tável, mas também um destinatário da lei: no código civil, por exemplo,

a pessoa é tida como parte contratual essencialmente honesta e previsí-

vel, como alguém em quem se pode confiar ainda que não participe dos

mesmos círculos pessoais de relações de família e conhecidos. Cada vez

mais proeminentes, os direitos autorais beneficiam o autor com direitos

individuais por sua força de invenção criativa; e desse modo pressu-

põem a integridade do autor como pessoa aos olhos da lei. Isso também

se aplica aos agentes do Estado como, por exemplo, o juiz. O juiz é

aquele que, no processo de aplicação da lei, considera a vontade da lei

como se fosse uma vontade “concedida por um poder maior do que ele

mesmo”46.

Na cultura jurídica burguesa-liberal, a estrutura de referência

obtida a partir do direito como uma norma jurídica explícita e das redes

44 DOMMANN, Monika. Autoren und Apparate. Die Geschichte des Copyrights im

Medienwandel. Frankfurt am Main: Fischer, 2014. p. 41.

45 Trata-se, portanto, de “relacionamentos pautados em normas” (Michael Oakeshott).

Também NARDIN, Terry. The Philosophy of Michael Oakeshott. Pennsylvania

State: University Park, 2001. p. 202-203.

46 LABAND, Paul. Das Staatsrecht des deutschen Reiches. Reimpressão da 5. ed.

1911. Aalen: Scientia, 1964. v. 2, p. 178 f. (grifo nosso, T.V.).

Teorias Contemporâneas do Direito 33

de conhecimento prático que se sustentam em um arcabouço artificial de

convenções é determinada pelo caráter comum da experiência comparti-

lhada socialmente. É, portanto, tido como certo (e isso poderia ser presu-

mido também ao longo de toda a história) que todos têm – ou pelo menos

poderiam ter – acesso ao conhecimento prático e à sua familiaridade pré-

-proposicional. Isso se aplica, por exemplo, aos padrões de diligência ou

aos conceitos jurídicos que definem o limite entre dano e lesão – um con-

ceito um tanto central para o direito burguês-liberal. Portanto, o conceito

de culpabilidade – do qual decorre a responsabilidade no direito comercial

– está ligado a uma condição normal das coisas, a uma concepção de uso

normal com base na qual o valor e a utilidade das mercadorias são deter-

minados. A carruagem que chega com marcas de ferrugem e rachaduras

no verniz infringe alguns pressupostos do comércio de carruagens e pode,

portanto, ser devolvida. O mesmo não se aplica, entretanto, a carruagens

de segunda mão.

Portanto, a experiência e o conhecimento acumulados por ci-

dadãos em suas relações horizontais uns com os outros, que ultrapassam

as fronteiras das relações tradicionais, ganham relevância em detrimen-

to do conhecimento vertical proveniente do rei e de seus conselheiros47.

O mesmo se aplica ao direito público em relação, por exemplo, à polí-

cia. Quando a ação da polícia é restrita à manutenção da ordem e da

segurança públicas, isso exclui ações de bem-estar social que ultrapas-

sem essas fronteiras. O poder de polícia, portanto, recai sobre práticas e

convenções sociais que não requerem autorizações reais ou mesmo que

sejam imunes a elas. Em algumas áreas específicas do direito burguês,

tal como o direito comercial, o sujeito do conhecimento comum é, em

última análise, intercambiável: aqui, ele é o universo dos executivos aos

quais se atribui uma experiência própria no mundo dos negócios. De

todo modo, é sempre um conhecimento distribuído, disponível a todos,

são sempre experiências que podem ser vivenciadas por todos que for-

mam essa base. Pode-se dizer, por outro lado, que a cultura jurídica

burguesa-liberal repousa sobre uma conexão íntima entre as normas

jurídicas explícitas e o conhecimento implícito, e ajuda a assegurar, por

meio dessa conexão, um conhecimento unificado de ambos núcleos de

significação.

47 Ver, em geral, (utilizando o exemplo histórico dos Estados Unidos) EGAN, Jim.

Authorizing Experience. Refigurations of the Body Politic in the Seventeenth-

Century New England Writing. Princeton: Princeton, 1999.

Thomas Vesting 34

7 O CONHECIMENTO DOS GRUPOS

Talvez não seja por acaso que, no final do século XIX, uma

epistemologia histórica e social que fosse além da tradição filosófica

clássica já começava a se delinear. Hans-Jörg Rheinberger foi quem mais

contribuiu para demonstrar, em várias publicações, como essa epistemo-

logia relativiza a noção de uma ciência unificada e universal, centrada na

física. O ideal (único) de uma teoria do conhecimento guiada por leis

matemáticas gerais provenientes das ciências naturais torna-se plural, e é

substituído pela ideia de uma multiplicidade de práticas de produção de

conhecimento, “estilo de pensamento”, e hábitos de percepção distintos

no tempo e no espaço. Ludwig Fleck dá voz a essa transição da teoria do

conhecimento à epistemologia ao, entre outras coisas, embasar desde o

princípio a epistemologia em uma estrutura sociocultural que transcende

a relação elementar sujeito-objeto. “Seja em qual local ou em qual mo-

mento comecemos, estaremos sempre já no meio das coisas”48. E, para

Fleck, o fato de estarmos “no meio das coisas” significa, antes de tudo,

que nenhum cientista pode mais ser entendido como um sujeito autoral

soberano, e sim apenas como entremeado desde o princípio em diversas

coletividades de pensamento. Tudo isso dá a entender que nunca pode-

mos nos livrar do fato do sujeito depender da experiência, das conven-

ções, e das condições práticas de trabalho de uma comunidade de cientis-

tas específica; como, por exemplo, as de um determinado laboratório

químico.

Assim como com a ciência, a cultura jurídica burguesa-liberal

do final do século XIX foi também expandida e transformada por um

“estilo de pensamento” orientado para a coletividade. Os diversos “inte-

resses” provenientes da sociedade e o entendimento de que haveria uma

“finalidade do Direito” (Der Zweck im Recht, citando o título do livro de

Rudolf von Jhering) começaram avançar em detrimento da concepção

anteriormente predominante acerca do direito, de maneira geral, e do

conhecimento prático comum. A cultura jurídica gradualmente abriu-se

para as novas condições institucionais e para as experiências práticas

delas provenientes. Na década de 1930, devido às demandas que uma

nova mídia – o rádio – gerou em relação à capacidade de atingir seus

ouvintes, Walter Benjamin falou sobre o “agrupamento” (Gruppierung)

como uma característica decisiva da nova situação epistemológica49. Com

48 RHEINBERGER, Epistemology, f. 29, p. 28.

49 BENJAMIN, Walter. Theater und Rundfunk. Zur gegenseitigen Kontrolle ihrer

Erziehungsarbeit (1932).

,

In: id., Medienästhetische Schriften. Frankfurt am Main:

Teorias Contemporâneas do Direito 35

essa formulação, pode-se dizer que a nova epistemologia é definida pela

experiência do agrupamento: o conhecimento (implícito) prático é agora

filtrado por uma infinidade de padrões de grupo, estruturados ainda mais

do que antes “de acordo com a camada social, com as áreas de interesse,

e com o ambiente”50. Em oposição ao sujeito soberano respeitável da

cultura burguesa-liberal, que se liberta das amarras da tradição e exerce

sua autonomia recentemente adquirida, o sujeito dos agrupamentos vive

“sobretudo em suas relações”51. O empregado, com sua orientação social

extrovertida, é um sujeito paradigmático dos agrupamentos52.

A epistemologia dos agrupamentos é ligada a um mundo social

composto de coletividades. Aqui, a unidade e o caráter comum do direito

e do conhecimento prático têm seu sentido extremamente relativizados, e

são confrontados com a crescente relevância de uma pluralidade de estru-

turas de grupo, que passam a determinar também o conhecimento prático.

Da mesma maneira, o significado do termo direito “positivo” passa a

depender de forças, grupos, organizações, e ambientes comunitários que

operam em uma esfera social – assim como sempre ocorreu com direito

comercial. Essa mudança que ocorreu no direito, de maneira geral, assim

como no mundo científico, é motivada, em primeiro lugar, pela relevân-

cia crescente de indústrias de produção em massa e de uma crescente

burocracia estatal. Esses dois fatores levaram a uma demanda cada vez

maior pelo conhecimento qualificado, exigindo frequentemente a colabo-

ração de especialistas: pode-se pensar, por exemplo, no aumento dos

padrões autoimpostos pelas indústrias técnicas e nas expectativas de gru-

po lá existentes53. Coletividades de conhecimento que englobem, diga-

mos, engenheiros elétricos, influenciam cada vez mais as normas e as

convenções, o sentido dos textos jurídicos e, desse modo, influenciam a

compreensão que a cultura jurídica tem de si mesma. O conhecimento das

normas técnicas, nesse caso, toma novos contornos. Além do conheci-

mento partilhado que, em princípio, está disponível para todos, emerge

um conhecimento subordinado a grupos específicos – frequentemente em

Suhrkamp, 2002. p. 396 ff., 398; Ver WEBER, Samuel. Theatricality as Medium.

New York: Fordham University Press, 2004. p. 110 ff.

50 BENJAMIN, Theater und Rundfunk. In: id., Medienästhetische Schriften, f. 47, p.

398.

51 LETHEN, Helmut. Cool conduct: the culture of distance in Weimar Germany. Trad.

Don Reneau. California: Berkeley, 2002. p. 189

52 RECKWITZ, Das hybride Subjekt, f. 39, p. 409.

53 Ver LADEUR, Die Netzwerke des Rechts. In: Netzwerke in der funktional differ-

renzierten Gesellschaft, f. 39, p. 143 ff., 147 ff; ver também id., Kommunikation

über Risiken im Rechtssystem. In: Ökologische Aufklärung, f. 5, p. 131 ff.

Thomas Vesting 36

cartéis – que também pode ser empregado estrategicamente a serviço de

interesses particulares54.

O que o crescimento da epistemologia de grupo significa para a

cultura jurídica pode ser extraído das mudanças na hermenêutica jurídica:

em vez de uma submissão “passiva” dos indivíduos às leis, encontramos

agora a noção de “Operação do Direito” (Rechtsarbeit) realizada pelo

intérprete55, que é amarrado a circunstâncias da sociedade industrial – o

conceito da concretização do direito por meio da produção de “concor-

dância prática”. A interpretação jurídica agora alude necessariamente a

uma autointerpretação, a uma pluralidade de interesses reais, autoenten-

dimentos, e visões de mundo em diversas esferas de significação – a in-

dústria, a impressa, o artista, as partes de um acordo, a escola, a ciência

etc. Essas esferas de significação estruturam previamente o espaço das

possíveis interpretações relevantes e, desse modo, trazem o novo proble-

ma do possível conflito entre diversos autoentendimentos. Isso leva a um

estado das coisas no qual a compreensão da lei não mais depende das

implicações de um ambiente inerentemente comum: a interpretação das

leis passa a inspirar-se em uma “sociedade de intérpretes aberta”, permi-

tindo uma maior flexibilidade no processo de interpretação e substituindo

a concepção de uma unidade do direito – e da premissa de um conheci-

mento prático estável e acessível – pela ideia de um consenso ou de uma

conciliação entre diferentes configurações de interesses e valores.

A novidade da epistemologia de grupo – novamente, dessa vez

com uma formulação um pouco diferente – é que o direito não pode mais

se referir a valores compartilhados ou a um conhecimento prático co-

muns. Torna-se, em vez disso, cada vez mais dependente de dinâmicas de

grupo, desconectadas de expectativas, normas, e leis que abranjam a to-

dos. O direito “positivo” do Estado torna-se dependente de uma estrutu-

ração de grupo anterior. Regras específicas para doença, idade, e demis-

são são suplementadas por um sistema de seguridade social complexo; a

experiência individual é substituída pelo conhecimento estatístico; os

direitos autorais perdem espaço para o uso coletivo; a cultura literária e

teatral burguesa é substituída, inclusive em termos de apoio e financia-

mento públicos, por empresas de comunicação concebidas de acordo com

a necessidade dos grupos. Seja em qual local ou em qual momento o in-

divíduo entre em ação, ele sempre estará desde o início, no meio das coi-

54 Ver VEC, Milos. Recht und Normierung in der Industriellen Revolution. Neue

Strukturen der Normsetzung in Völkerrecht, staatlicher Gesetzgebung und gesell-

schaftlicher Selbstnormierung. Frankfurt am Main: Klostermann, 2006, p. 165 ff.

55 Ver MÜLLER, Friedrich. Strukturierende Rechtslehre. Berlin, 1994, p. 246 ff.

Teorias Contemporâneas do Direito 37

sas, intrincado em um mundo de coletividades, conectado a uma rede de

“atribuições” e de possibilidades interconectadas que, por sua vez, aponta

para um mundo de significações práticas moldado pelo conhecimento

especializado de grupo e sua familiaridade pré-proposicional.

8 CONHECIMENTO EM REDE

A evolução mais recente na cultura jurídica e científica da mo-

dernidade pode ser descrita como uma transição de um paradigma de

grupo plural para um paradigma em rede. Os novos modelos e estruturas

da epistemologia em rede não são, entretanto, facilmente compreendidos

e descritos. O que parece decisivo é, por um lado, o enfraquecimento do

efeito “pré-estruturador” de grupos e organizações sobre a autointerpreta-

ção de esferas de significação social e de suas respectivas ordens norma-

tivas: em vez de ambientes comunitários (empresas, associações, partidos

etc.) ancorados de forma relativamente estável, encontramos um tipo de

liquidação permanente no qual os processos de produção de conhecimen-

to tornam-se fluidos e dinâmicos. Por outro lado, o conhecimento reunido

e articulado pelos grupos é complementado por novas formas de conhe-

cimento especializado, provenientes de novas comunidades epistêmicas. A

diferenciação do conhecimento profissional em indústrias de alta tecno-

logia, por exemplo (tecnologia de computação, nanotecnologia, biotecno-

logia, entre outros), traz consigo um relaxamento das fronteiras tradicionais

das organizações: a empresa, ou mesmo áreas específicas dentro de uma

empresa, abre-se para projetos compartilhados, para que possa estabelecer

conexões temporárias em rede com outras empresas ou com outras áreas. O

conhecimento prático torna-se portanto subordinado a projetos e manifesta-

-se tal qual um “enxame”. Como, por exemplo, no desenvolvimento expe-

rimental de um novo software ou de um novo hardware na indústria de

computadores do Vale do Silício, onde qualquer resultado pode apenas ser

estruturado juridicamente após sua

,

concretização56.

Isso significa que a curadoria do conhecimento prático passa a

ser feita em comunidades microepistêmicas, tais como a dos agentes par-

ticipantes do mercado financeiro. Essas entidades não podem, entretanto,

ser pensadas como entidades organizadas com pontos de controle hierár-

56 Ver LADEUR, Karl-Heinz; VESTING, Thomas. Geistiges Eigentum im Netzwerk –

Anforderungen und Entwicklungslinien. In: EIFERT, Martin; HOFFMANN-RIEM,

Wolfgang (Ed.). Geistiges Eigentum und Innovation. Innovation und Recht I.

Berlin: Duncker & Humblot, 2008. p. 123 ff.

Thomas Vesting 38

quico. São, em vez disso, constituídas internamente a partir de diversos

ambientes comunitários com experiências práticas distintas, às vezes não

interpenetráveis entre si (como gerenciamento de risco, controle, alta

gerência etc.)57. A experiência altamente especializada, frequentemente

incompreensível para outras partes da estrutura organizacional – tal como

experiências com modelagem matemática (realizada por computadores)

de instrumentos financeiros de alto risco – eclipsa o conhecimento recipro-

camente observável de toda a organização, e até mesmo a noção de expe-

riência comum compartilhada. O quadro torna-se ainda menos claro quan-

do se considera que a extrema fragmentação do conhecimento prático nas

redes dinâmicas de cooperação é confrontado, na esfera pública, com um

conhecimento experimental comum que é, agora, fortemente determinado

pelos roteiros personalizados das mídias eletrônicas (tais como a “ganância

dos banqueiros”). A última parte desse quadro é o “sujeito com estilo de

vida pós-moderno”58, que personaliza seu individualismo59, que passa a

falar apenas por si mesmo e que ganha pelo menos uma parte da sua iden-

tidade “compartilhando” a experiência de eventos midiáticos com outros e

trocando experiências “extremamente pessoais” nas “mídias sociais”60.

Assim, nos casos mais extremos, a vida dos indivíduos desloca-se entre

experiências locais de uma dimensão do mundo radicalmente particular e

os roteiros globais, universais do mundo midiático.

Uma reação disseminada resultante da mudança para um conhe-

cimento em rede consiste, aparentemente, em uma interpretação da com-

plexidade de uma produção de conhecimento com base em projetos como

uma volta do individual, e uma declaração do direito como um meio de

expressão do eu: o sujeito exige reconhecimento da sua autenticidade e da

possibilidade de autodeterminação; e a legislação política, a prática inter-

pretativas dos tribunais, a doutrina das universidades são ajustadas a essa

estrutura de aspirações do indivíduo personalizado. O que havia sido um

conjunto de direitos sociais ligados a aspirações definidas e moldados

para uma pluralidade de grupos torna-se agora um novo sistema de segu-

ros para a necessidade de cada indivíduo; os currículos escolares ampla-

mente disseminados abrem espaço para uma “oficina de aprendizado”

57 Ver LADEUR, Karl-Heinz. The Financial Market Crises. A Case of Network Failure.

In: KJAER, Poul F. (Ed.). The Financial Crisis in Constitutional Perspective. The

Dark Side of Functional Differentiation. Oxford: OUP, 2011. p. 63 ff., 81 ff.

58 RECKWITZ, Das Hybride Subjekt, f. 39, p. 441, f. 1.

59 Ver, em geral, EHRENBERG, Alain. Das Unbehagen in der Gesellschaft (La Société

du Malaise). Berlin: Suhrkamp, 2011.

60 KAUFMANN, Jean-Claude. Wenn ICH ein anderer ist (Quand Je est un autre).

Konstanz: UVK, 2010. p. 173 ff.; RECKWITZ, Das Hybride Subjekt, f. 39, p. 574 ff.

Teorias Contemporâneas do Direito 39

individualizada; e um direito a downloads ilimitado assume o lugar dos

direitos autorais.

Ainda que isso pareça retórico ou hiperbólico, um breve estudo

sobre o desenvolvimento das leis de proteção da informação e sobre os

direitos de personalidade na Alemanha, por exemplo, aponta claramente

nessa direção: aqui, o domínio das concepções normativas de autonomia

se estende pela legislação e por processos de garantia de direitos, concep-

ções que deixam de oferecer um ponto de referência para o conceito de

um conhecimento comum. Em vez do Outro da cultura, surge um Eu que

deve agora ser um “Eu escolhido” ou, de todo modo, pelo menos o “co-

formador” de sua própria personalidade61. O Eu torna-se a base de sua

própria identidade com amplo direito à autêntica “autoapresentação”62.

Com o advento das redes temporárias de cooperação e com o

aumento do individualismo personalizado, parece afrouxar também a

conexão entre o direito “positivo” e a prática instituída das formas de

vida compartilhadas, com seus hábitos e compulsões. Se a cultura jurídica

da fase dos “grupos plurais” ainda almejava a institucionalização de sis-

temas nos quais o conhecimento comum pudesse ser gerado – pode-se

pensar aqui na criação de sistemas de seguridade pública, no apoio estatal

para o desenvolvimento de padrões técnicos para usinagem ou construção

civil, ou para a constituição de emissoras públicas de radiodifusão –; o

Estado atual parece cada vez mais perder de vista a necessidade de um

equilíbrio entre, por um lado, as estruturas jurídicas criadas pela legisla-

ção, pelo Judiciário, e pela Administração e, por outro, do conhecimento

prático compartilhado por toda a sociedade. A crise do conhecimento

comum resultante da fragmentação dos núcleos de significação factuais e

normativos na nova epistemologia em rede não pode, entretanto, ser solu-

cionada por uma simples volta ao indivíduo e a seus direitos de autoapre-

sentação. Ela exige a elaboração de um direito das redes que aceite a na-

tureza da experiência nas novas redes de produção de conhecimento com

base em projetos e atribua-lhe uma estrutura jurídica apropriada.

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Teorias Contemporâneas do Direito 43

DA INCERTEZA DO DIREITO À

INCERTEZA DA JUSTIÇA

Marcelo Neves1

Sumário: 1. Incerteza do Direito: um Problema? 2. Da Ambiguidade e Va-

gueza do Direito como Linguagem Ordinária à Complexidade e Contingência

da Comunicação como Fatores da Incerteza do Direito. 3. Da Incerteza do

Direito como Condição de Segurança Jurídica à Incerteza Ínsita ao Paradoxo

da Justiça. 4. Referências.

1 INCERTEZA DO DIREITO: UM PROBLEMA?

Na tradição jurídica, a questão da incerteza sempre foi colocada

como um problema a ser necessariamente superado. O legislador deveria

escrever com precisão para evitar qualquer equívoco no momento da

aplicação do direito e o doutrinador deveria definir com perfeita clareza e

exatidão os conceitos jurídicos relevantes para a solução de casos. Se tal

estado de coisas não fosse alcançado, caberia imputar à atividade legife-

rante ou à construção doutrinária uma falha ou um defeito grave, que

deveria ser negado, afastado ou superado.

Na formação do Estado moderno, desenvolveu-se a ideia da

inexorável precisão e univocidade da linguagem jurídica e dos textos

legais. Essa compreensão se fundava, inicialmente, na crença de que a

letra da lei é a expressão exata da vontade do legislador soberano. Tal

entendimento já se encontra na obra de Thomas Hobbes, segundo a qual

as palavras do soberano são expressas precisamente, não podendo dar

1 Professor Titular de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade de

Brasília. Atualmente, Senior Research Scholar na Faculdade de Direito da Universi-

dade de Yale.

Marcelo Neves 44

ensejo a qualquer variação interpretativa da lei por parte dos súditos

,

e

juízes2. A certeza do direito, fundada na exatidão da relação entre vontade

soberana e sua expressão linguística, é associada à própria segurança

jurídica dentro do Estado com unidade política territorial. Caso contrário,

haveria o retrocesso ao estado de natureza.

Em Montesquieu, a crença na certeza do direito é deslocada da

relação entre soberano e súdito para o vínculo do juiz ao legislador: “Os

juízes da nação são apenas […] a boca que pronuncia as palavras da

lei”3. Também nessa formulação supõe-se uma linguagem jurídica ine-

quivocamente clara, expressão precisa da vontade do legislador. Os juízes

seriam “autômatos silogísticos”, tendo sido essa feição da atividade judi-

cante usualmente concebida como uma exigência da emergente sociedade

burguesa, levada por “uma ideologia de segurança jurídica”4. Também

nessa compreensão a segurança jurídica é associada diretamente à certeza

do direito, fundada na precisão da linguagem do legislador.

A compreensão de Hobbes e Montesquieu sobre a certeza nor-

mativa no Estado moderno encontrará uma correspondência jurídico-

-doutrinária na Escola da Exegese, que surge na França no contexto da

promulgação do Código de Napoleão (1804), glorificado como resposta

normativo-institucional perfeita à exigência de certeza e segurança jurídi-

ca5. Nessa orientação, a univocidade de termos e enunciados normativos

estava associada a um “culto ao texto da lei” como expressão precisa da

“intenção do legislador”, que era elevada ao primeiro plano6. Assim reza-

va a “profissão de fé” de Demolombe, um dos mais importantes represen-

tantes da escola da exegese: “os textos antes de tudo”7.A um outro, Bug-

net, atribui-se a seguinte afirmação: “Eu não conheço o direito civil; só

ensino o Código de Napoleão”8. E um terceiro, Laurent, escreveu: “Os

códigos não deixam nada ao arbítrio do intérprete; este já não tem por

missão fazer o direito, o direito está feito. Não há mais incerteza; o direi-

to está escrito nos textos autênticos”9. Bonnecase esclarecia, porém: “Um

texto, de acordo com ela [a Escola da Exegese], não vale nada por si

mesmo, mas somente pela intenção do legislador, a qual ele suposta-

mente traduz na realidade, o direito positivo esgota-se nessa intenção; é

2 HOBBES, 2010 [1651], p. 166-9 [142-6].

3 MONTESQUIEU, 1874 [1748], p. 149.

4 COSSIO, 1944, p. 85.

5 A respeito, ver BONNECASE, 1924; 1933, p. 288 ss., 522 ss.

6 BONNECASE, 1924, p. 128 ss.; 1933, p. 524 ss.

7 Apud BONNECASE, 1924, p. 129; 1933, p. 525.

8 Apud BONNECASE, 1924, p. 128; 1933, p. 524. Cf. também 1924, p. 29-30; 1933: 292.

9 Apud BONNECASE, 1924, p. 128; 1933, p. 524.

Teorias Contemporâneas do Direito 45

ela que, além do texto, o jurista deve procurar”10. Dessa maneira, toda a

crença na certeza do direito resultava de uma convicção de que haveria

uma combinação perfeita entre a clara intenção do legislador e a sua exa-

ta expressão no texto legal.

Outra corrente fortemente orientada na afirmação da certeza do

direito recorria, antes, à precisão do artefato conceitual da “ciência do

direito”. Para a chamada “jurisprudência dos conceitos”, desenvolvida

especialmente na Alemanha na segunda metade do século XIX, onde

ainda não se contava com um Código como referência, a univocidade dos

termos jurídicos decorreria de uma depuração conceitual de base lógico-

-científica. O direito é compreendido, então, como um sistema caracteri-

zado pelo “nexo lógico entre os conceitos” e a “racionalidade dos fins”,

uma compreensão do direito que importa uma teoria exegética “objetiva”,

de acordo com a qual o fim da interpretação jurídica seria “esclarecer o

significado da lei como um todo objetivo de sentido”11.

Em ambas essas correntes doutrinárias, caberia ao intérprete

descobrir o único sentido juridicamente possível das expressões e dos

enunciados normativos. O ponto crucial do processo interpretativo residi-

ria na concatenação horizontal e vertical entre termos e proposições le-

gais (Escola da Exegese), ou entre conceitos técnico-juridicamente preci-

sos (jurisprudência dos conceitos), para que se definisse a única solução

correta do caso. A essas concepções da interpretação jurídica subjaz um

entendimento realista da linguagem, segundo o qual se busca o sentido

essencial de termos e expressões jurídicas para possibilitar a aplicação

correta do direito.

Esses modelos foram contestados desde a “jurisprudência dos

interesses” na Alemanha12, em um desenvolvimento que culmina com o

“movimento do direito livre”13. Também o realismo americano no início

do século XX, no qual o juiz passa ser considerado “o verdadeiro legisla-

dor”14. Entretanto, essas vertentes tendiam basicamente a uma contrapo-

sição do subjetivo ao objetivo ou da adequação social do direito à consis-

tência jurídica. Por um lado, a contraposição do subjetivo ao objetivo

parece insatisfatória para a compreensão do direito como um fenômeno

social construído em processos de comunicação que, além de não se an-

10 BONNECASE, 1924, p. 131-2; 1933, p. 526.

11 LARENZ, 1979, p. 35-6.

12 Embora remonte a JHERING (1992 [1872]), a jurisprudência dos interesses é formu-

lada definitivamente por HECK (1914).

13 KANTOROWICZ, 2002 [1906].

14 CARDOZO, 1991 [1921], p. 102 ss. [trad. bras. 2004, p. 74 ss.].

Marcelo Neves 46

corarem em uma objetividade preestabelecida, vão bem além da subjeti-

vidade, não podendo ser reduzidos a esta. Por outro lado, a contraposição

da adequação social do direito à consistência jurídica desconsidera que o

direito moderno, ao diferenciar-se como campo, esfera ou sistema social,

exige não apenas a resposta socialmente adequada aos casos jurídicos,

mas também, em nome da segurança das expectativas, a consistência

jurídica das decisões. Daí decorre um paradoxo central do direito positi-

vo, que, como veremos adiante, está inerentemente vinculado à questão

de sua incerteza normativa. Formalismo e realismo jurídico, ao concen-

trarem-se, respectivamente, na consistência jurídica ou na adequação

social do direito, não enfrentam de forma apropriada a questão complexa

da incerteza como condição de segurança e, relacionado a isso, o parado-

xo da justiça do sistema jurídico.

Entretanto, a questão da certeza posta nos termos da Escola da

Exegese e da jurisprudência dos interesses também foi rejeitada nas duas

principais correntes do positivismo jurídico do século XX, a teoria pura

do direito construída por Hans Kelsen, no âmbito do civil law, e o positi-

vismo jurídico analítico elaborado por H. L. A. Hart, no espaço do com-

mon law. Para Kelsen, dentro de uma moldura objetiva a ser jurídico-

-cientificamente determinada, o órgão de intepretação-aplicação poderia

escolher subjetivamente de acordo com critérios jurídico-políticos. Assim,

o “direito a aplicar” é definido “como uma moldura dentro da qual há

várias possibilidades de aplicação”15. Nessa formulação, reaparece a

questão do objetivo e do subjetivo como duas dimensões a distinguirem-

-se precisamente, de tal maneira que a fronteira entre certeza (objetiva,

científica) e incerteza (subjetiva, política) poderia ser fixada exatamente.

Similarmente, no modelo de Hart, a noção de “textura aberta do

direito”16 aponta para uma distinção entre o momento em que o juiz está

vinculado a regras e o momento em que ele decide discricionariamente,

livre de regras, sem vínculo a uma imposição normativa. Também nessa

formulação, embora com base em outros pressupostos, pode-se verificar

uma distinção entre o momento objetivamente vinculante da regra e o

momento subjetivamente aberto do direito. A concepção é orientada pela

diferença entre um espaço de obrigatoriedade e uma área de discriciona-

riedade para o sujeito da intepretação-aplicação jurídica, o juiz.

Nessas duas vertentes do positivismo jurídico, a noção de um

sujeito cognoscente, capaz de distinguir

,

autonomamente o momento da

15 KELSEN, 1960, p. 348-9 [trad. bras. 2006, p. 390-1].

16 HART, 1994, p. 91 ss., 124 ss., 145-7, 272 ss. [trad. bras. 2009, p. 118 ss., 161 ss.,

187-90, 351 ss.].

Teorias Contemporâneas do Direito 47

certeza (objetiva, vinculante) e o momento da incerteza (subjetiva, discri-

cionária) do direito, não considera que o direito como fenômeno social e

a sua aplicação concreta como processo social neutralizam a subjetivida-

de e não se relacionam a um todo objetivo de sentido. O direito e sua

aplicação são uma construção social, nem subjetiva nem objetiva nem

sequer intersubjetiva, mas sim transubjetiva17. É na transubjetividade do

social e, nele, do jurídico que se assenta a questão inexorável da incerteza

do direito.

Contra o positivismo, o modelo filosófico ideal de Ronald

Dworkin vem reagir à questão da incerteza do direito com o recurso aos

princípios, como um padrão jurídico fundado moralmente que, na falta de

regra apropriada à solução do caso, ofereceria critério vinculante para a

sua solução pelo juiz18. Evidentemente, Dworkin não desconhece a ques-

tão empírica da incerteza e imprecisão da linguagem jurídica, nem dos

conflitos factuais de intepretação. Nesse sentido, reconhece que “a mora-

lidade da comunidade é incoerente”, caracterizada por conflitos19. Mas

ele recorre a um sujeito ideal ou transcendental, o juiz Hércules, que,

orientado primariamente pelos princípios e capaz de identificá-los nas

controvérsias em torno de direitos, viabiliza praticamente que se chegue a

uma única resposta correta ou, no mínimo, ao melhor julgamento de um

caso20. Embora se trate de uma ideia regulativa21, a aptidão do juiz Hércules

para tomar a única decisão correta ou oferecer o melhor julgamento rela-

ciona-se com o modelo dos princípios como superadores de qualquer

discricionariedade ou incerteza nos chamados “casos difíceis”. E, muito

embora varie pessoal e temporalmente a compreensão de se um caso ser

“difícil” ou “fácil”22 e, portanto, diversifique-se também conforme o con-

texto o que possa definir-se como a única decisão correta ou o melhor

17 Cf. FISCHER-LESCANO, 2013, p. 17 ss.; LADEUR, 2014.

18 Cf. espec. DWORKIN, 1978, p. 16 ss.; 46 ss. [trad. bras. 2002, p. 27ss.; 74 ss.].

19 “se quisermos usar o conceito de uma moralidade comunitária em teoria política,

será preciso que também reconheçamos a existência de conflitos no âmbito dessa mo-

ralidade” (DWORKIN, 1978, p. 126 [trad. bras. 2002, p. 197]).

20 DWORKIN, 1978, espec. p. 279 [trad. bras. 2002, p. 429]; 1986, espec. p. 239 [trad.

bras. 2003, p. 286-7]; 1985, p. 119 ss. [trad. bras. 2001, p. 175 ss.]; 2006, p. 41-3

[trad. bras. 2010, p. 60-3.].

21 Embora HABERMAS (1992, p. 272ss. [trad. bras. 2003, v. I, p. 276 ss.]) critique, na

esteira de MICHELMAN (1986, p. 76), o caráter “monológico” do juiz Hércules em

Dworkin, ele adota a ideia regulativa de uma única resposta ou decisão correta

(HABERMAS, 1992, p. 277 [trad. bras. 2003, v. I, p. 281]). Assim, passa-se de um

sujeito ideal como observador privilegiado (Hércules) para um processo intersubjetivo

(discurso) como ponto dinâmico privilegiado de observação, orientado contrafactual-

mente para a resposta correto, a saber, o consenso.

22 DWORKIN, 1986, p. 354 [trad. bras. 2003, p. 423-4].

Marcelo Neves 48

julgamento23, Hércules tem a capacidade de adequar os princípios ao con-

texto no modelo de Dworkin, superando as incertezas.

Essa postura transfere para um sujeito ideal o papel de superar

a incerteza do direito. Essa modelo contrafactual de um observador privi-

legiado, capaz de considerar as diversas perspectivas, sem qualquer ponto

cego, apenas serve para ocultar a incerteza inexorável do direito, assenta-

da na agônica social, na qual estão envolvidos vários observadores par-

ciais dos processos jurídicos. Na sociedade moderna, os pontos de obser-

vação se multiplicam cada vez mais, sendo inusitado que se possa falar de

um ideal regulativo capaz de descortinar o consenso subjacente na mora-

lidade comunitária. Antes se impõe discutir quais são as estruturas e os

processos normativos adequados à absorção e dissipação legítima da incer-

teza estrutural do direito. Cabe observar que, nesse contexto, os princípios

enriquecem os potenciais e as alternativas da cadeia argumentativa do di-

reito. O direito se flexibiliza mediante princípios para possibilitar uma

maior adequação do argumentar jurídico à complexidade da sociedade24. E

tudo isso torna ainda mais patente a incerteza inexorável do direito.

Tanto nos modelos do positivismo do século XX quanto no idea-

lismo jurídico-filosófico de base moralista, a questão da incerteza é con-

siderada um problema a ser enfrentado e superado por um sujeito da inte-

pretação e aplicação jurídica, seja ele empírico ou transcendental. Supo-

nho, porém, que a incerteza seja inexorável ao direito e à sua linguagem,

devendo ser tratada como algo relacionado ao processo social como fe-

nômeno transubjetivo de comunicação e ser reconhecida como um para-

doxo produtivo da reprodução legítima do direito moderno.

2 DA AMBIGUIDADE E VAGUEZA DO DIREITO COMO

LINGUAGEM ORDINÁRIA À COMPLEXIDADE E

CONTINGÊNCIA DA COMUNICAÇÃO COMO

FATORES DA INCERTEZA DO DIREITO

Já se tornou lugar-comum a assertiva de que a linguagem jurídi-

ca, enquanto tipo de linguagem ordinária ou natural especializada e não

uma linguagem artificial25, é ambígua e vaga, o que dá ensejo a interpre-

23 Cf. DWORKIN, 1986, p. 239 [trad. bras. 2003, p. 287].

24 A esse respeito, ver NEVES, 2014.

25 Cf., entre muitos, VISSER’T HOOFT, 1974; CARRIÓ, 1973, p. 37-44; GREIMAS;

LANDOWSKI, 1976, p. 83-4; OLIVECRONA, 1962, p. 151.

Teorias Contemporâneas do Direito 49

tações divergentes26. No sentido lógico, a conotação corresponde à di-

mensão semântica de sentido (significado), enquanto a denotação concer-

ne à dimensão semântica de referência27. Assim sendo, mesmo que a

ambiguidade em relação ao significado do texto normativo seja superada

no processo de intepretação, ainda resta a questão da vagueza em face dos

referentes. Portanto, não só as normas como significado prescritivo de um

texto são, em parte, construídas no decurso do processo de concretização

do direito, mas também os fatos como referentes são construções do di-

reito. Na relação entre texto normativo e suporte fático (concreto)28, defi-

ne-se não só a norma a aplicar na solução do caso, mas também o fato

jurídico a ser enquadrado na hipótese normativa (abstrata). Na relação de

tensão e complementaridade entre texto normativo e suporte fático de-

senvolve-se a trama da incerteza da norma jurídica a ser aplicada e do

fato a ser enquadrado normativamente. Quando trata-se de entidade fami-

26 Do incontestável retiram-se consequências as mais contraditórias entre os diferentes

modelos teóricos e metodológicos – cf., p. ex., KELSEN, 1960. p. 348-9 [trad. bras.

2006, p. 390-1]; SMEND, 1968 [1928], p. 236; EHRLICH, 1967 [1913], p. 295;

ROSS, 1968, p. 116-7. Especificamente sobre a ambiguidade e vagueza da linguagem

jurídica, ver CARRIÓ, 1973, p. 26-33; KOCH, 1977, p. 41 ss.; WARAT, 1984, p. 76-

-9; 1979, p. 96-100. Em contratendência, DWORKIN (1978, p. 133 ss. [trad. bras.

2002, p. 209 ss.]), baseado na distinção entre “conceito” e “concepção”, propõe uma

releitura da noção de “cláusulas constitucionais vagas”. Warat, por sua vez, tratando

das imprecisões semânticas das expressões jurídicas, distingue as seguintes manifes-

tações: vagueza, ambiguidade, anemia semântica, anfibologia e afasia semântica (cf.

1972, p. 55 ss., 178-9). Porém, a anfibologia e a anemia semântica são casos mais

graves da ambiguidade (cf. WARAT, 1984, p. 78; 1972, p. 169; 1979, p. 99-100). E a

afasia semântica

,

é uma situação mais grave da anemia semântica, na qual as pala-

vras perdem seu significado e se transformam em meros significantes cujo sentido

dependerá de variável axiológica aplicada ao contexto normativo (cf. WARAT,

1972, p. 178-9)

27 Cf. VON WRIGHT, 1963, p. 93-4 [trad. esp. 1970, p. 109]; COPI, 1961, p. 107 ss. [trad.

bras. 1978, p. 119-23].

28 Por um lado, Pontes de Miranda enfatiza que “o suporte fáctico ainda está no mundo

fáctico; a regra jurídica colore-o, fazendo-o entrar no mundo jurídico” (1974, t. I, p.

21, grifo no original; cf. id., p. 3 ss.,74 ss.). Por outro, ele (1974, t. V, p. 231) distin-

gue o suporte fático do “dado fáctico, fato ou complexo de fatos sem entrada no mun-

do jurídico”. Esclareça-se que, embora utilize aqui o conceito no sentido análogo ao

de Pontes de Miranda, considero o suporte fático como o referente (construído) de re-

latos no processo de concretização, que, quando qualificado juridicamente mediante a

afirmação da incidência da respectiva norma jurídica nesse processo, transforma-se

em fato jurídico, a saber, no referente (construído) de um enunciado implícito ou ex-

plícito de subsunção. É por isso que ele não é o puro dado de fato em sua riqueza

inesgotável, meramente suposto, mas não integralmente apreendido na linguagem ou

comunicação social em geral e jurídica em especial.

Marcelo Neves 50

liar na união hom*oafetiva estável, qual a norma a aplicar?29 Configura-se

a hipótese normativa de crime de organização criminosa (ou formação de

quadrilha), qual o fato enquadrável?30 Trata-se de aborto ou de antecipa-

ção terapêutica do parto em caso de feto anencéfalo, qual a norma a apli-

car ou não aplicar?31

Todas essas situações, envolvendo, em grau maior ou menor,

ambiguidade e vagueza da linguagem jurídica, implicam não só uma

questão semântica, mas também a questão pragmática da variedade de

utentes da linguagem jurídica ou, mais precisamente, da multiplicidade de

expectativas normativas em relação ao textos jurídicos. Isso significa que

a mesma expressão pode ganhar significados os mais diferentes não ape-

nas por força da diversidade de situações comunicativas, mas também em

virtude da pluralidade de perspectivas dos expectantes. Os expectantes

podem ser pessoas, organizações ou inclusive sistemas funcionais. Ao

observarem o problema jurídico a ser solucionado, surge a possibilidade

de diversas compreensões de um mesmo fato e de um mesmo texto, via-

bilizando a variedade de fatos jurídicos e de normas jurídicas.

A textualidade e a facticidade originárias conduzem à incerteza

na definição ou construção do caso e da norma a ser aplicada. Evidente-

mente, essa situação varia conforme o grau de abertura semântica do

texto normativo. Assim, a disposição que estabelece a idade mínima de

trinta e cinco anos como condição de elegibilidade para Presidente da

República (art. 14, § 3º, inc. VI, alínea “a”, da Constituição Federal),

implica um grau muito limitado de incerteza32. Por seu turno, o dispositi-

vo que determina o procedimento “declarado incompatível com o decoro

parlamentar” como fundamento para a perda do mandato de deputado ou

senador (art. 55, inc. II, da Constituição Federal) remete a um alto grau de

incerteza. Nesse caso, não só sob os aspectos diacrônicos da língua, ou

seja, a sua variação temporal, mas também do ponto de vista sincrônico

29 A esse respeito, é relevante a discussão e divergências interpretativas no julgamento

da ADPF 132/RJ (ADI 4277/DF), Rel. Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno – j. em

05.05.2011 – DJe-198 13.10.2011 – public. 14.10.2011.

30 Nesse particular, são significativas as divergências no julgamento da Ação Penal (AP)

470/MG – Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno – j. em 17.12.2012 – DJe-074,

19.04.2013 – public. 22.04.2013.

31 A esse propósito, cumpre destacar as controvérsias no julgamento e em torno da

ADPF 54/DF – Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno – j. em 12.04.2012 – DJe-080,

29.04.2013 – public. 30.04.2013.

32 Em relação dispositivo similar da Constituição dos Estados Unidos da América, Ely

(1980, p. 13) afirma, no sentido semelhante: “Em um extremo – por exemplo, o man-

damento de que o Presidente ‘tenha atingido a idade de trinta e cinco anos’ – a lin-

guagem é tão clara que a referência consciente a fins parece desnecessária”.

Teorias Contemporâneas do Direito 51

da língua33, a noção de decoro parlamentar pode variar imensamente, seja

entre gerações ou entre regiões, seja entre postura de interesses, valores e

representações morais dos expectantes em geral, com também entre pers-

pectivas sistêmicas de observação da sociedade (religiosa, econômica,

científica, educacional, familiar, política etc.).

Além disso, a dupla contingência inerente ao social (e, portanto,

ao jurídico)34 aponta para a incerteza ínsita em toda comunicação. Tam-

bém a relação entre aquele que expede o texto normativo e aquele que o

interpreta e aplica em casos determinados, ou, de maneira mais simples,

entre legislador (inclusive o constitucional) e juiz, importa a dupla con-

tingência. Em princípio, o problema da dupla contingência está presente

na relação de observação recíproca entre ego e alter na interação. Mas a

questão da dupla contingência não se restringe à interação, na qual os

polos ego e alter remetem a (embora não se confundam com) pessoas,

tendo em vista que alter e ego podem remeter a sistemas sociais35 e, por-

tanto, também a dimensões (subsistemas) deles; aqui, à legislação (ou ao

legislativo), primariamente política, e à jurisdição (ou ao judiciário), pri-

mariamente jurídica.

A dupla contingência implica que ego conta com a possibilida-

de de que a ação de alter seja diversa daquela que ele projetou e vice-

-versa. Embora não possa persistir uma “pura dupla contingência” – pois

há os condicionamentos da interação36 e a “absorção da insegurança”

mediante a “estabilização de expectativas”37 –, “a tentativa de prever

precisamente o outro fracassaria inevitavelmente”38. Isso importa a supo-

sição mútua de “graus de liberdade”39 (a ação de alter pode ser bem di-

33 Sobre linguística sincrônica e linguística diacrônica, ver SAUSSURE, 1922, p. 114-

-260 [trad. bras. (s.d.), p. 94-220]. Entretanto, adotamos esta distinção não no sentido

estrito que se desenvolve na obra de Saussure, ou seja, como dicotomia entre relações

que unem termos coexistentes e relações que unem termos sucessivos (cf. id., p. 140

[trad. bras., p. 116]), fundada em uma rígida postura metodológica de separação (cf.

id., p. 129 [trad. bras., p. 107]), mas sim para caracterizar o relacionamento paradoxal

entre os elementos estáticos e dinâmicos das linguagens naturais consideradas em sua

“dialética” interação língua-fala.

34 LUHMANN, 1987a, p. 148 ss.; 1987b, p. 32 ss.; 2002, p. 315 ss. [trad. esp. 2007b,

pp. 325 ss.]. O conceito de dupla contingência remonta, segundo LUHMANN (1987a,

p. 148; 2002, p. 317 [trad. esp. 2007b, p. 327]), a Talcott Parsons e um grupo de pesqui-

sadores a ele vinculados. Cf. PARSONS et al., 1951, p. 16; PARSONS, 1968, p. 436.

35 LUHMANN, 1987a, p. 152,155.

36 Cf. LUHMANN, 1987a, p. 168,185-6.

37 LUHMANN, 1987a, p. 158.

38 LUHMANN, 1987a, p. 156.

39 LUHMANN, 1987a, p. 186.

Marcelo Neves 52

versa da projetada no vivenciar de ego e vice-versa), que converte o com-

portamento em ação: “O comportamento torna-se ação no espaço de

liberdade de outras possibilidades de determinação”40. Disso decorre que

a dupla contingência envolve uma combinação de não identidade e iden-

tidade: “Ego vivencia alter como alter ego. Ao mesmo tempo que tem a

experiência com a não identidade das perspectivas, ego vivencia a iden-

tidade dessa experiência de ambos os lados”41.

Na relação entre legislação e jurisdição ou, mais abrangente-

mente, entre normatização e concretização normativa, estabelece-se ini-

,

cialmente uma dupla contingência como em qualquer processo comunica-

tivo. Ao fazer referência ao legislador (não no sentido subjetivo, pessoal,

mas sim institucional), o intérprete-aplicador atribui-lhe uma dação de

sentido para o respectivo texto normativo. Isso não significa que essa

atribuição importe que este substitua aquele como produtor da respectiva

norma. A situação aponta para uma pretensão limitada de estruturar a

dupla contingência e determinar o conteúdo de uma comunicação (o que

é que alter quis dizer?). A mensagem do legislador ou constituinte (alter)

carrega um conteúdo informativo que precisa ser compreendido por ego

(juiz), que poderá equivocar-se. Essa alteridade é análoga a todo processo

social, inclusive os mais simples do cotidiano: “eu digo que tu disseste

isso quando falaste naquela oportunidade”. Nesse caso, ego não está di-

zendo que o conteúdo da fala seja seu. Ele atribui um sentido à fala de

alter, conforme o conteúdo informativo que compreendeu na mensagem.

Essa relação de mensagem, informação e compreensão, ínsita a qualquer

comunicação42, também se aplica na macro-escala dos sistemas sociais.

No nosso contexto, isso significa que a imputação de um conteúdo ao

texto normativo (assim como a um texto literário) não significa que eu

seja autor da respectiva norma (ou livro). Nesse sentido, cabe distinguir

dois níveis: o da produção institucional (inclusive não organizada no caso

dos costumes jurídicos43) da norma e a construção hermenêutica da nor-

ma no processo de concretização. Supõe-se uma dação de sentido prima

facie pelo órgão de produção normativa, que, no processo concretizador,

é complementada ou transformada por uma dação de sentido em caráter

40 LUHMANN, 1987a, p. 169.

41 LUHMANN, 1987a, p. 172.

42 LUHMANN, 1983a, p. 137; 1987a, p. 193 ss.; 2002, p. 292 ss. [trad. esp. 2007b, p.

306 ss.].

43 Quanto ao significado jurídico do costume depender de linguagem e envolver inter-

pretação de textos, ver as interessantes discussões e divergências no julgamento do

RE 153531/SC – 2ª T. – Rel. Min. Francisco Rezek – j. em 03.06.1997 – DJ

13.03.1998.

Teorias Contemporâneas do Direito 53

definitivo. Mas permanece a alteridade: a construção hermenêutica (no

sentido amplo deste termo) parte da produção institucional da norma,

sendo controlada socialmente no decurso do processamento da dupla

contingência e, portanto, criticável como incorreta ou inadequada às con-

dições do presente44.

A dupla contingência entre legislador e juiz importa sempre um

plus na comunicação, ou uma “triangulação” no sentido de Davidson45,

insuscetível de ser reduzida a uma das perspectivas ou a uma convergên-

cia delas. A “intertextualidade” da interpretação importa que esta seja

compreendida “como produção de novo texto com base em um texto mais

antigo, como ampliação do fundamento do texto”46. Na relação entre alter

(o legislador) e ego (juiz), cada um dos lados parte da linguagem e dos

critérios de cada um dos sistemas a que estão primariamente vinculados,

a política e o direito.

Mas essas formulações sobre o impacto da vagueza e ambigui-

dade da linguagem natural ou ordinária, da pluralidade de perspectivas de

observação dos expectantes e da dupla contingência da comunicação

sobre a incerteza do direito não devem ser tomadas em caráter a-histó-

rico, indiferente ao tipo de formação social. Nesse particular, o incremento

da complexidade e contingência social47, relacionadoà evolução dos mei-

os comunicativos de difusão, passando da linguagem não escrita (oral e

figurativa) ao advento da escrita e da imprensa, até chegar aos meios

eletrônicos e, por fim, à Internet48, tem um papel fundamental na dimensão

de incerteza do direito.

Em sociedades pré-modernas, fundamentadas em uma forte

unidade acerca de valores e, correspondentemente, em concepções morais

44 Nesse sentido, embora com base em outros pressupostos teóricos e com outras impli-

cações, cf. BETTI, 1955, p. 816 ss.; GADAMER, 1990 [1960], p. 330 ss.

45 Embora Davidson parta de outros pressupostos, sua ideia de “triangulação”, que

implica um outro nível além dos comunicadores, ou seja, o social ou da comunicação

(DAVIDSON, 1982, p. 327; 1991, pp. 159-60), tem algo de semelhante ao conceito

de comunicação de LUHMANN (1987a, pp. 193 ss.), entendida como “processo sele-

tivo triádico” de informação, mensagem e compreensão, que emerge “de cima”

(1987a, p. 43-4), no âmbito da dupla contingência entre alter e ego.

46 LUHMANN, 1993, p. 340.

47 Complexidade entendida como presença permanente de mais possibilidades (alterna-

tivas) do que as que são suscetíveis de ser realizadas; contingência compreendida co-

mo a condição em que “as possibilidades apontadas para as experiências ulteriores

podem ser diferentes das que foram esperadas” (LUHMANN, 1987b, p. 31), impli-

cando, portanto, incerteza no plano das expectativas.

48 Sobre essa evolução destaca-se a monumental obra, em quatro volumes, de Thomas

VESTING (2011a; 2011b; 2013; 2015).

Marcelo Neves 54

válidas para todas as esferas do agir e do vivenciar, uma interpretação

divergente da determinada pelo “soberano” é, em regra, considerada um

desvio condenável. Mesmo quando, excepcionalmente, surgem alternati-

vas de interpretação, a unidade de valores, representações morais e inte-

resses corporificada no detentor supremo de poder serve como critério

que ignora ou reprime o dissenso eventual. É verdade que o surgimento

da escrita, afastando as pressões da relação concreta entre presentes, já se

apresenta como fator relevante de possibilitação de interpretações des-

viantes49. Mas o fato é que a questão das divergências interpretativas a

respeito de textos jurídicos, relacionada à percepção e abordagem de sua

plurivocidade, só se torna problemática com a complexidade da socieda-

de moderna. Nesta, a multiplicidade de valores, interesses e discursos

possibilita uma variedade estrutural de expectativas sobre os textos jurí-

dicos. Em relação à Constituição, que é mais abrangente na dimensão

material, pessoal e temporal, essa situação acentua-se. Considerando que

no Estado de direito predomina o princípio da interpretação conforme a

Constituição50, as questões jurídicas, ao ganharem direta ou indiretamente

um significado constitucional, carregam um forte potencial de conflito

interpretativo. Mas é nas questões diretamente constitucionais que se

observa mais claramente os chamados “casos difíceis” ou controversos.

Nelas, a ambiguidade intensifica-se e a vagueza amplia-se, de tal maneira

que se pode observar uma maior sensibilidade da esfera pública em rela-

ção às mesmas. Em outras palavras, pode-se afirmar que os “casos consti-

tucionais difíceis”, por pressuporem uma maior multivocidade e implica-

rem divergências mais acentuadas na interpretação do texto constitucio-

nal, relacionam-se intimamente com a maior variedade de expectativas

presentes na esfera pública sobre o significado da Constituição. Essa va-

riedade de expectativas, por sua vez, é indissociável do dissenso estrutu-

ral sobre valores e interesses que caracteriza a esfera pública pluralista51.

Daí porque a incerteza que marca a modernidade apresenta-se como um

desafio para o Estado Constitucional52.

Em suma, no contexto da complexidade e contingência da so-

ciedade moderna, a incerteza do direito é algo inexorável e precisa ser

assumida, processada, absorvida e dissipada nos procedimentos de con-

cretização jurídica, mas não negada ou reprimida, pois, senão, reinsurgirá

de forma descontrolada e destrutiva.

49 LUHMANN, 1993, p. 252 ss.

50 A respeito desse lugar-comum, ver, entre muitos outros, MÜLLER, 1995, p. 86-9;

HESSE, 1995, p. 30-33.

51 Cf. NEVES, 2006, p. 136 ss.

52 HAVERKATE, 1992, p. 120 ss.

Teorias Contemporâneas do Direito 55

3 DA INCERTEZA

,

DO DIREITO COMO CONDIÇÃO DE

SEGURANÇA JURÍDICA À INCERTEZA ÍNSITA AO

PARADOXO DA JUSTIÇA

A incerteza do direito moderno é uma garantia contra a certeza

totalitária de uma única e última instância capaz de dizer qual é o direito

a ser aplicado ao caso. Disso decorre que, ao contrário de uma suposição

muito comum, a incerteza é uma condição da segurança jurídica. Por

quê?

Quando, no início da controvérsia jurídica, já se sabe ou se tem

certeza do resultado, o procedimento respectivo está de tal maneira de-

formado, que se transforma em um mero ritual, exatamente porque não há

incerteza quanto ao resultado53. Assim, não só a legitimação pelo proce-

dimento estará ausente, mas também a segurança jurídica como uma exi-

gência do direito positivo moderno, sob condições sociais supercomple-

xas. A definição do resultado de antemão significa que o direito está su-

bordinado a fatores sociais imediatos, como interesses econômicos con-

cretos, constelações particulares de poder, boas relações e outros meca-

nismos corruptores da reprodução consistente do direito. Especialmente

em experiências autoritárias e totalitárias, na impossibilidade de uma

intepretação desviante dos interesses dos poderosos, reprimida ou supri-

mida a incerteza do direito, falta qualquer segurança jurídica dos indiví-

duos e da sociedade civil. O resultado de qualquer caso pode ser predefi-

nido sem que haja nenhuma relevância da discussão jurídica fundada na

incerteza quanto ao desfecho do caso. O direito como mecanismo de re-

solução de conflitos e de instituição destinada ao “alívio das expetativas”

normativas54 fica paralisado no seu potencial de inclusão. Uma das partes

já pode ser considerada antecipadamente vitoriosa.

Mas tal situação de insegurança jurídica decorrente da repressão

ou ocultação da incerteza jurídica não ocorre apenas em experiências

autocráticas, nas quais, em nome da razão de estado ou da segurança

nacional, pode-se garantir a certeza dos resultados e suprimir a segurança

jurídica. Também em experiências de “corrupção” difusa do direito me-

diante particularismos políticos, econômicos e relacionais no caso de

estado de direito ou constitucionalismo aparente ou simbólico, afasta-se a

incerteza quanto ao resultado dos procedimentos jurídicos, que perdem

credibilidade, o que leva à insegurança jurídica. Criam-se redes de conta-

53 Cf. LUHMANN, 1983b [1969], p. 38.

54 “O direito não é primariamente uma ordem coercitiva, mas sim um alívio das expec-

tativas” (LUHMANN, 1987a, p. 100).

Marcelo Neves 56

to55 conforme as quais é possível definir-se antecipadamente o desfecho.

Assim, quem entra com uma ação contra o mais poderoso está fadado,

não só a perder no processo jurídico, mas também a sofrer retaliações

ilícitas por causar tal vexame. Não se trata apenas de “donos do poder”,

mas de donos do direito. Havendo esses, sempre capazes de contar com o

resultado a seu favor, fica prejudicada a incerteza jurídica e, com isso, a

segurança jurídica, que exige a credibilidade no procedimento como ca-

minho de busca de um resultado juridicamente consistente. E a segurança

jurídica, que é complementada pela incerteza procedimentalmente cons-

truída do direito, tanto pode ser vista em estritos termos da teoria dos

sistemas como consistência jurídica da decisão56, quanto no sentido da

teoria do discurso como coerência jurídica57, apesar dos pressupostos

diversos.

A incerteza desenvolve-se primariamente no momento da varie-

dade do direito, enquanto a segurança jurídica é processada primordial-

mente no momento da redundância, ambos fundamentais para a autono-

mia operativa do direito em face de particularismos sociais os mais diver-

sos58. A incerteza exsurge procedimentalmente em face da textualidade e

facticidade dos pontos de partida, que exigem a definição seletiva, res-

pectivamente, do significado prescritivo (norma jurídica a aplicar) e do

referente semântico (fato jurídico) apropriado à solução do caso. Supõe-

-se, porém, que, definida – entre os textos invocados e diante dos fatos

apresentados pelas partes e membros do órgão judicial – a norma a ser

aplicada ao fato jurídico enquadrado na hipótese normativa, a decisão

sirva de parâmetro generalizado para outros casos da mesma feitura jurí-

dica. Essa é a dimensão da segurança jurídica. Embora suponha a incerte-

za quanto ao resultado no ponto de partida, ela se dirige à reorientação

das expectativas no desfecho do caso, para, assim, promover a produção

de redundância com respeito ao futuro (ver figura 1). Isso não significa

que a cadeia da incerteza não possa ser reaberta plenamente em outro

caso, mas, em nome da segurança jurídica, impõe-se a discussão aberta

55 As redes de contato não devem, nesse contexto, ser confundidas com os “sistemas de

contato” no sentido de LUHMANN (1987a, p. 278-80; 1983b [1969], p. 75-81), que

servem complementarmente ao funcionamento do direito positivo, pois elas, antes,

são bloqueadoras da reprodução consistente do direito (a respeito, ver NEVES, 1992,

p. 101 ss.).

56 Cf. LUHMANN, 1993, p. 225-6.

57 Cf. HABERMAS, 1992, p. 207 [trad. bras. 2003, v. I, p. 210].

58 Sobre a combinação de redundância e variedade como condição de autonomia, ver

ATLAN, 1979, que se refere aos dois casos extremos da relação entre redundância e

variedade: “A morte por rigidez, a do cristal, do mineral, e a morte por decomposi-

ção, a da fumaça” (id., p. 281).

Teorias Contemporâneas do Direito 57

do overruling ou distinguishing à luz dos textos e fatos invocados no

novo caso, para que novamente haja uma decisão capaz de ser suportada

sem quebrar a credibilidade do direito, ou seja, apta para reorientar as

expectativas normativas envolvidas no procedimento.

Essa relação de complementaridade e tensão entre incerteza do

direito e segurança jurídica leva-nos ao paradoxo da justiça. No modelo

da desconstrução, essa questão é formulada sugestivamente por Derrida:

Para ser justa, a decisão de um juiz, por exemplo, deve não somente

seguir uma regra de direito ou uma lei geral, mas deve assumi-la,

aprová-la, confirmar-lhe o valor, por um ato reinstaurador, como se,

no limite, a lei não existisse dantes, como se o próprio juiz a inventas-

se a cada caso [...]. Em suma, para que uma decisão seja justa e res-

ponsável, é preciso que no seu momento próprio – se é que há um –

ela seja ao mesmo tempo regrada e sem regra, conservadora da lei e

suficientemente destrutiva ou suspensiva da lei, de tal maneira que

deva a cada caso reinventá-la, re-justificá-la, reinventá-la ao menos

na reafirmação e na confirmação nova e livre de seu princípio59.

De tal formulação resulta a afirmação peremptória: “A justiça é

uma experiência do impossível”60. Mas, assim, estaríamos diante de uma

aporia, não de um paradoxo. A aporia (ἀπορία), na tradição da filosofia

vétero-europeia, leva ao “impasse” ou à “perplexidade paralisante”; na

versão de Derrida, ela envolve um ponto de “indecidibilidade” insuperá-

vel, que mina o texto e o discurso, inviabilizando a decisão, pois, com

ela, “não seria mais possível constituir um problema, um projeto ou uma

proteção”, “não há mais problema”61. Como “experiência de não passa-

gem”, “trata-se do impossível ou do impraticável”62. Tomada, nesse ter-

mos, como base da filosofia, ela resulta em uma metafísica negativa,

como impossibilidade do ir além, em contraste com a metafísica positiva

clássica, que insiste na necessidade do permanecer aquém. É por isso que

a justiça, em seu caráter aporético, sendo a “própria desconstrução”, fica

no campo de “uma experiência do impossível”.

59 DERRIDA, 1994, p. 50-1.

60 DERRIDA, 1994, p. 38.

61 “il ne serait même plus possible de constituer un problème, un projet ou une protection”,

“il n’y a plus de problème” (DERRIDA, 1996, p. 31).

,

Entretanto, Derrida põe a “palavra

problema” “em tensão com essa outra palavra grega deaporia” (“en tension avec cet

autre mot grec d’aporia” – id., p. 30-1), possibilitando uma leitura no sentido de

um paradoxo entre problema e aporia, mas sem querer explorá-lo nem enfrentá-lo.

62 DERRIDA, 1996, p. 30 (“l’expérience de non-passage”) e 31 (“il s’agit de

l’impossible ou de l’impraticable”).

Marcelo Neves 58

Ao contrário da metafísica negativa da impossibilidade, expres-

sa no impasse aporético da desconstrução, o paradoxo do problema e de

sua solução desdobra-se, nos termos da teoria dos sistemas, como proces-

samento da contingência, além tanto do necessário quanto do impossível,

no processo sócio-histórico. Nessa perspectiva, a justiça não é apresenta-

da como “a experiência do impossível”, mas sim como “fórmula de con-

tingência”63, que implica “escassez”, “falta”, ambas motivadoras da ação.

Assim como a escassez na economia e a falta no amor, como fórmulas de

contingência, instigam a reprodução econômica e a paixão amorosa, a

justiça é catalisadora do jurídico-social.

A justiça, nessa perspectiva, tem duas dimensões: a justiça in-

terna, concernente à tomada de decisão juridicamente consistente (autor-

referência); a justiça externa, referente à tomada de decisão adequada-

mente complexa à sociedade (heterorreferência)64. Por um lado, sem que se

possa contar com uma solução juridicamente consistente, o direito perde a

sua racionalidade. Isso implica que, sem um sistema jurídico orientado

primariamente no princípio constitucional da legalidade, ou seja, sem “jus-

tiça constitucional interna”, não cabe falar de racionalidade jurídica em

uma sociedade complexa. Os julgamentos vão subordinar-se, então, a

fatores particularistas os mais diversos, sem significado jurídico-consti-

tucional para a orientação do comportamento e a estabilização das expecta-

tivas normativas. A racionalidade do direito exige, portanto, consistência

constitucional (redundância, segurança jurídica). Por outro lado, a justiça

como racionalidade jurídica importa a adequação social do direito (varie-

dade, incerteza do direito). Evidentemente, essa é uma questão difícil, pois

no ambiente do direito há várias pretensões de autonomia sistêmica em

conflito. Uma adequação econômica do direito, por exemplo, pode ter im-

pactos negativos na educação, no ambiente, na arte e na ciência e vice-

-versa. Também há valores e perspectivas morais os mais diversos no

mundo da vida fragmentado da sociedade mundial complexa do presente65.

Algo que se apresenta adequado a um grupo pode parecer inadequado a

63 LUHMANN, 1993, p. 214 ss. Luhmann se refere também à fórmula de contingência

em outros sistemas sociais, como, por exemplo, escassez na economia, legitimidade

no sistema político, limitacionalidade na ciência e Deus na religião (1997, t. 1, p. 470

[trad. esp. 2007a, p. 371]; 1993, p. 222).

64 LUHMANN, 1993, p. 225-6; 1988, p. 26-5; 1981, p. 374-418.

65 Uso “mundo da vida” não como “pano de fundo” da “ação comunicativa”, dirigida ao

consenso, nos termos de HABERMAS (1986, p. 593; cf. também 1982, p. 182), mas

sim para me referir às dimensões do ambiente dos sistemas funcionais não estrutura-

das sistêmico-funcionalmente, envolvendo uma diversidade de valores, interesses, ex-

pectativas e discursos entre si conflituosos (cf. NEVES, 2012, p. 122 ss.).

Teorias Contemporâneas do Direito 59

outro. E não há, nem no plano dos sistemas funcionais nem no plano do

mundo da vida, um projeto hegemônico único66. A adequação social do

direito, constitucionalmente amparada, não pode significar, portanto, uma

resposta adequada a pretensões específicas de conteúdos particulares, mas

sim a capacidade de possibilitar a convivência não destrutiva de diversos

projetos e perspectivas, levando à legitimação dos procedimentos constitu-

cionalmente estabelecidos, na medida em que estes servem para reorientar

as expectativas em face do direito, sobretudo daqueles que eventualmente

tenham suas pretensões rejeitadas por decisões jurídicas.

Mas a relação entre justiça interna e externa é paradoxal. Não se

pode imaginar um equilíbrio perfeito entre consistência jurídica e adequa-

ção social do direito, a saber, entre justiça interna e externa, ambas ancora-

das no tratamento igual/desigual de casos e dos homens como pessoas67. A

justiça do sistema jurídico como fórmula de contingência importa sempre

uma orientação motivadora de comportamentos e expectativas que buscam

esse equilíbrio, que sempre é imperfeito e se define em cada caso concreto.

Por um lado, um modelo de mera consistência jurídica conduz a um forma-

lismo socialmente inadequado. O excesso de ênfase na consistência jurí-

dica pode levar a graves problemas de inadequação social do direito, que

perde, então, sua capacidade de reorientar as expectativas normativas e,

portanto, de legitimar-se socialmente. Por outro lado, um modelo de mera

adequação social leva a um realismo juridicamente inconsistente. Na falta

de valores, de morais e de interesses partilhados congruentemente na so-

ciedade moderna supercomplexa, a ênfase excessiva na adequação social

tende a levar à subordinação do direito a projetos particulares com preten-

são de hegemonia absoluta. Nesse sentido, embora sempre defeituoso, pois

nunca é alcançado plenamente e depende da experiência de cada caso, o

equilíbrio entre justiça interna e externa serve como orientação para os

envolvidos na rede de comunicações do sistema jurídico.

Nesses termos, a justiça constitui um paradoxo. Repetindo, toda

fórmula de contingência motiva a ação e comunicação enquanto é uma

experiência com algo que falta68. Por exemplo, a legitimidade na política

democrática implica sempre uma oposição que exige mudanças; a escas-

66 A esse respeito, observa SONJABUCKEL (2007, p. 223): “Não existe apenas um

único projeto desse que poderia dominar o contexto social, mas sim projetos concor-

rentes, em correspondência com a multiplicidade das diferenças antagônicas”.

67 Cf. LUHMANN, 1993, p. 110 ss., 223 ss.; NEVES, 2009, p. 66 ff.

68 LUHMANN (1993, p. 220), ao relacionar a fórmula de contingência à dimensão de

“determinabilidade/indeterminabilidade”, afirma, por sua vez, que ela não se refere

“a fatos atualmente existentes (compreendidos, designados), mas sim a outras possi-

bilidades de lidar com eles”.

Marcelo Neves 60

sez importa valores que motivam os agentes econômicos; Deus importa

um mistério com o incognoscível, que é base da ação e comunicação

religiosa; a ausência (falta) do amante é o momento em que se comprova

o amor, motivando a ação ou a comunicação amorosa. Também a justiça

é sempre algo que falta, implicando a busca permanente do equilíbrio

entre consistência jurídica e adequação social das decisões jurídicas. Esse

paradoxo pode ser processado e solucionado nos casos concretos, mas ele

nunca será superado plenamente, pois é condição da própria existência do

direito diferenciado funcionalmente: como fórmula de contingência, a

superação do paradoxo da justiça implicaria o fim do direito como siste-

ma social autônomo, levando a uma desdiferenciação involutiva ou ense-

jando um “paraíso moral” de plena realização da justiça, assim como o

fim da escassez como fórmula de contingência da economia conduziria a

um “paraíso da abundância”, a saber, ao fim da economia69.

Nesse sentido, indo além da incerteza do direito, o próprio pa-

radoxo da justiça do sistema jurídico, ao processar consistência jurídica e

adequação social, é catalisador de incerteza. Nesse sentido, cabe dizer,

considerando o caráter altamente contingente das comunicações e expec-

tativas na sociedade mundial hodierna, que a justiça como incerteza é a

experiência do improvável.

4 REFERÊNCIAS

ATLAN, Henri. Entre le cristal et lafumée: Essai sur l’organisation duvivant. Paris:

,

e internacionais para aprendermos suas preciosas lições e,

através desta série, multiplicarmos nosso conhecimento sobre ensino

jurídico, mercado profissional e metodologias. Esperamos que este vo-

lume amplie os termos do debate e os horizontes da reflexão e desejamos

uma boa leitura!

Pedro Fortes

Editor da Série

Teorias Contemporâneas do Direito 7

SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................ 9

O Direito Moderno e a Crise do Conhecimento Comum ............................... 19

Thomas Vesting

Da Incerteza do Direito à Incerteza da Justiça ............................................... 43

Marcelo Neves

Regulando a Incerteza: A Construção de Modelos Decisórios e os Riscos

do Paradoxo da Determinação .......................................................................... 65

Fernando Leal

Positivismo Normativo ou Novos Desenhos Institucionais? – Uma Análise

de Duas Alternativas para se Contestar a Supremacia das Cortes Cons-

titucionais ........................................................................................................... 77

Thomas Bustamante

Reconfiguração Conceitual? O Direito Digital como Metáfora de Si Mesmo ... 97

Juliano Maranhão

Constitucionalismo Social: Nove Variações Sobre o Tema Proposto por

David Sciulli ..................................................................................................... 129

Gunther Teubner

A Visibilidade do Político: Secularização Versus Universalização em Carl

Schmitt .............................................................................................................. 157

Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco

Pedro Fortes / Ricardo Campos / Samuel Barbosa (Coords.) 8

A Metamorfose do Direito Global para Uma Genealogia do Direito Além

do Estado Nacional no Limiar do Século XIX ................................................179

Ricardo Campos

Uma Leitura Contemporânea da Teoria Sistêmica do Direito: Múltiplos

Elementos Normativos do Direito na Sociedade ...........................................193

Pedro Fortes

Fé e Conhecimento no Direito ........................................................................221

Ino Augsberg

Espaços Jurídicos e a Territorialidade do Direito Estatal ...........................237

Samuel Barbosa

A Importância da Dedução na Argumentação Jurídica ..............................245

Fábio P. Shecaira

Direito e Felicidade: Algumas Implicações da Teoria Comportamental ....259

Noel Struchiner / Úrsula S. C. C. Vasconcellos

Por Uma História das Imagens da Normatividade do Direito .....................279

Alexandre da Maia

Estado Cibernético de Direito ........................................................................297

Gabriel Lacerda

A Transformação da Semântica Jurídica na Sociedade Pós-Moderna a

Partir da “Subsunção” de Casos ao “Equilíbrio” e Uma Semântica de

Redes .................................................................................................................309

Karl-Heinz Ladeur

Índice Alfabético ..............................................................................................325

Teorias Contemporâneas do Direito 9

INTRODUÇÃO

O presente volume discute ‘teorias contemporâneas do direito: o

direito e as incertezas normativas’, a partir de uma perspectiva interdisci-

plinar e pluralista sobre o direito na sociedade contemporânea. A presente

obra é o resultado de um simpósio internacional organizado pelos edito-

res em março de 2015 na FGV DIREITO RIO e que contou com a parti-

cipação de autores brasileiros e alemães para discutir o tema em dois dias

de intensa e rica discussão acadêmica. A reunião dos trabalhos em uma

série dedicada ao ensino jurídico, à metodologia de pesquisa e à formação

profissional se justifica porque os ensaios apresentam um mosaico com a

proposta de uma visão renovadora sobre como a teoria pode contribuir

para se pensar o direito no Brasil. Além de trabalhos atuais e inéditos de

autores consagrados no Brasil e no exterior, reunimos ensaios de jovens

professores e pesquisadores, cujos temas e textos contêm, em seu conjun-

to, um novo olhar contemporâneo sobre a teoria do direito e que – espe-

ramos – terá impacto nos debates de sala de aula, na perspectiva metodo-

lógica e no refinamento das reflexões analíticas do leitor da série CA-

DERNOS FGV DIREITO RIO.

Os colaboradores trabalharam com dois grandes eixos para o

tratamento da relação entre direito e incerteza normativa. O primeiro eixo

está relacionado à coerência formal do direito e a discussões relativas à

dogmática jurídica, a teorias da norma jurídica e do direito como um sis-

tema autônomo, harmônico e unificado para solucionar conflitos e absor-

ver as incertezas da sociedade contemporânea. Inseridas neste debate

estão teorias contemporâneas sobre os fundamentos epistemológicos da

normatividade jurídica, a racionalidade da decisão jurídica e a conceitua-

ção política do fenômeno jurídico a partir da ideia de soberania estatal. O

segundo grande eixo, por sua vez, tem como partida a crise existencial do

direito contemporâneo desde a desintegração da unidade entre o Estado e

a Igreja, que encerrou um modelo de teologia política em que o controle

social fundava-se em valores religiosos e iniciou um período de busca

pluralista por novos valores fundacionais do Estado democrático de direi-

Pedro Fortes / Ricardo Campos / Samuel Barbosa (Coords.) 10

to. Inseridas neste debate estão discussões sobre o conteúdo do fenômeno

jurídico, sua gramática moral, sua lógica argumentativa, sua estética con-

tingente, seu flerte com comportamentalismos metanormativos e com

tecnologias cibernéticas.

A perda da certeza fundacional da ordem jurídica – com a secu-

larização estatal e a ruptura da unidade de sentido e valores conferida pela

religião – impõe a necessidade de refletirmos sobre o tema das incertezas

normativas. Nessa perspectiva, pode-se pensar em eventuais substitutos

para a lacuna deixada pela religião1. Os candidatos a substituto da teologia

são projetos de unidade semântica do direito a partir de teorias da sobera-

nia estatal e da razão jurídica. O soberano real é substituído pela soberania

popular, encarnada não mais no corpo do monarca, mas na constituição do

corpo político, na composição de um parlamento e no espírito de leis pro-

duzidas a partir de uma separação de poderes de cunho democrático2. Já o

projeto da racionalidade jurídica percorreu distintas vias históricas,

incluindo o iluminismo filosófico de matriz kantiana, a crítica dialética e

fenomenológica formulada por Hegel, sua valorização como motor de

desenvolvimento por Max Weber e sua identificação com o poder feita

pelo positivismo jurídico e pela teoria social contemporânea3. A questão

da racionalidade jurídica se apresenta, portanto, com diversas roupagens,

permitindo discussões sobre a coerência interna do direito, da argumenta-

ção jurídica, das instituições sociais, das alocações de recursos econômi-

cos e do poder político. Uma questão fundamental diz respeito à autono-

mia do direito em relação às demais ciências sociais e aos fundamentos

políticos e sociais do fenômeno jurídico e da normatividade.

Esta questão nos conduz ao problema da relação entre a teoria e

o conhecimento ordinário articulado dentro da sociedade. A descentrali-

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Marcelo Neves 64

Teorias Contemporâneas do Direito 65

REGULANDO A INCERTEZA:

A CONSTRUÇÃO DE MODELOS

DECISÓRIOS E OS RISCOS DO

PARADOXO DA DETERMINAÇÃO

Fernando Leal1

Sumário: 1. Introdução. 2. Localização do Problema: Precisão Descritiva x

Ambição Normativa. 3. Um Problema Metodológico. 4. Dois Exemplos. 5.

Conclusão. 6. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Entre os problemas centrais da filosofia do direito, três são

permanentes. Eles estão relacionados à identificação do que possa ser

chamado de direito, à definição da justiça e à justificação de decisões

jurídicas. A maneira mais simples de expressar a permanência desses

problemas é mostrar que eles não encontram respostas definitivas. Se

tomarmos como exemplo o debate que separa tradicionalmente positivis-

tas de não positivistas sobre a natureza do direito – um debate que diz

respeito, portanto, ao primeiro problema indicado – encontraríamos em

Kelsen uma certa resignação realista sobre as possibilidades de soterra-

mento definitivo das disputas entre os dois lados. Para o autor, “[o] que o

positivismo jurídico é não está superado e nunca será superado. Muito

menos o direito natural. Este nunca será superado. Essa oposição é eter-

na. Os espíritos da época mostram apenas que logo um ponto de vista,

1 Professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito pela Christian-Albrechts-Universität

zu Kiel. Doutor e Mestre em Direito Público pela UERJ. Pelos comentários e sugestões

a uma versão anterior deste texto sou grato a Thomaz Pereira.

Fernando Leal 66

logo o outro, estará em evidência”2. Mas uma outra maneira de se referir

à permanência daqueles problemas está relacionada à pluralidade de

questões que cada um daqueles temas levanta e pode vir a levantar. A

permanência, ao contrário do aspecto anterior, não decorre da precarieda-

de das respostas, mas das dificuldades de se delimitar as próprias pergun-

tas relevantes vinculadas a cada um daqueles grandes temas. “O que é o

direito?”, “o que é a justiça?” e “como uma decisão jurídica pode ser

considerada justificada?” são, portanto, apenas algumas perguntas que

captam o que está por trás de cada um dos três problemas apresentados.

Embora o tema da incerteza normativa – um problema perma-

nente para a teoria do direito – possa estar relacionado a cada um daque-

les três pontos, ele é tradicionalmente encarado como a razão para a pere-

nidade do terceiro problema. Se a justificação de decisões jurídicas é um

problema permanentemente aberto na filosofia do direito é porque nem

sempre é claro se ou como o direito atua sobre o comportamento indivi-

dual em determinadas situações – ou porque, ainda que este não seja o

caso, a aplicação da resposta jurídica para certo tipo de questão claramen-

te regulada pelo direito mostra-se, em circunstâncias especiais, indesejá-

vel3. Assim, o problema da justificação de decisões jurídicas existe por-

que o direito pode ser considerado em alguma medida estruturalmente

indeterminado4. E, para a tomada de decisão jurídica, essa indeterminação

é a principal fonte de incertezas sobre o resultado jurídico de determina-

das questões. Conhecer a fonte dessas incertezas, os tipos de problemas

normativos por trás delas, os limites da linguagem para a enunciação de

padrões de comportamento completamente determinados e apresentar

mecanismos voltados a reduzi-las ou mantê-las sob controle são exem-

plos de subtemas da questão mais geral a respeito da justificação de deci-

sões jurídicas que não se seguem diretamente do material jurídico pree-

xistente ao momento da tomada de decisão.

No caso específico das propostas teóricas que erguem a preten-

são de conduzir processos de justificação de decisões em casos difíceis,

2 KELSEN, Hans. Disukussion zum Vortrag von Erich Kaufmann. Veroffentlichungen

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dição, incerteza e Estado de Direito. Revista de Direito Administrativo, v. 243, p.

79-112, 2006, p. 91 e s.

Teorias Contemporâneas do Direito 67

os debates permanentes costumam girar em torno dos méritos e deméritos

da incorporação por autoridades oficiais do direito das diferentes alterna-

tivas para limitar as possíveis escolhas arbitrárias daqueles que têm por

função atribuir uma resposta jurídica para determinada questão. E assim

caminham as disputas constantes entre partidários de diferentes visões

sobre como juízes, advogados e outros participantes do discurso jurídico

deveriam desenvolver as suas cadeias de argumentos para mostrar por

que as soluções que propõem para casos controversos não são o produto

de simples escolhas pessoais. Parafraseando Kelsen, seria possível dizer

que as divergências entre coerentistas, pragmatistas, textualistas e tantos

outros nunca será superada. Ora uns, ora outros parecerão ser aqueles que

sugerem a resposta mais adequada, à sua maneira, para determinado pro-

blema jurídico. Não raro, essas diferentes teorias podem ser até ortogo-

nais relativamente aos resultados de disputas jurídicas pontuais, já que

podem sustentar, ainda que por caminhos diferentes, a mesma resposta

jurídica5. No entanto, mesmo assim, ainda haverá algo por que divergir.

Para além dessas disputas de primeira ordem, contudo, é possí-

vel identificar pontos de desacordo relacionados à própria construção

dessas teorias normativas. Metaproblemas, portanto, que podem trazer

questões importantes para reflexões filosóficas sobre o problema da justi-

ficação de decisões jurídicas. Para voltar mais uma vez às discussões

sobre a natureza do direito, as disputas entre descritivistas, normativistas

e naturalistas são expressões de como disputas sobre a metodologia mais

adequada para o

,

desenvolvimento de um projeto filosófico de investiga-

ção da natureza do direito pode estar no centro do que, no fundo, pode

separar positivistas de não positivistas6. Da mesma forma, questões rela-

cionadas ao método de construção de teorias podem ser cruciais para a

avaliação do potencial efetivo de certas teorias normativas da decisão

jurídica para inspirar práticas jurídicas – especialmente judiciais. Apre-

5 BIX, Brian. Robert Alexy, Radbruch’s Formula, and the Nature of Legal Theory.

Rechtstheorie, v. 37, 2006, p. 144.

6 V. a respeito COLEMAN, Jules. Methodology. In: COLEMAN, Jules; SHAPIRO,

Scott J. (Eds.). The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law.

Oxford: Oxford University Press, 2002. p. 311-351. DICKSON, Julie. Evaluation

and Legal Theory. Oxford: Hart Publishing, 2001; ALEXY, Robert. The nature of

arguments about the nature of law. In: MEYER, Lukas, PAULSON, Stanley L. &

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From the Legal and Political Philosophy of Joseph Raz. Oxford: Oxford University

Press, 2003. p. 3-16. LEITER, Brian; LANGLINAIS, Alex. The Methodology of legal

philosophy. University of Chicago Public Law & Legal Theory Working Paper

407, 2012. Disponível em:

gal_theory/398/>. Acesso em: 29 dez. 2015.

http://philpapers.org/rec/MEYRCA

http://philpapers.org/rec/MEYRCA

Fernando Leal 68

sentar um problema de natureza metodológica capaz de afetar a qualidade

de teorias dessa natureza é o objetivo central deste trabalho.

2 LOCALIZAÇÃO DO PROBLEMA: PRECISÃO

DESCRITIVA X AMBIÇÃO NORMATIVA

Teorias e métodos de decisão costumam ser desenhados para li-

dar com aquele que poderia ser chamado de “o problema fundamental da

metodologia jurídica”. Para Alexy, este problema poderia ser enunciado

da seguinte maneira: como controlar racionalmente as valorações de to-

madores de decisão que precisam resolver problemas jurídicos cujas res-

postas não se extraem diretamente da conjugação de proposições norma-

tivas e proposições factuais?7

O propósito da maior parte das teorias normativas de justifica-

ção e dos métodos de decisão que pretendem enfrentar essa pergunta é

limitar – ou ao menos manter sob controle crítico – as margens de valora-

ção de tomadores de decisão chamados a enfrentar casos difíceis no direi-

to. Um dos pressupostos que justifica a importância desse tipo de empre-

endimento é o de que tomadores de decisão que não se sentem limitados

pelo direito podem impor as suas próprias preferências ao decidirem ca-

sos concretos. O conhecimento de uma certa predisposição de tomadores

de decisão – notadamente juízes – para atuar de maneira não vinculada ao

direito é, nessa linha, um dos aspectos da realidade que informa teorias e

métodos de decisão jurídica que almejam, no fundo, combatê-la.

Se essa leitura pode ser considerada plausível, existe uma di-

mensão pretensamente descritiva – ainda que não empiricamente justifi-

cada – que orienta a construção de diversas teorias normativas da decisão

jurídica e de métodos de fundamentação de decisões. São teorias e méto-

dos que pretendem partir de como o mundo é para recomendar como ele

deve ser. Nesse sentido, o investimento em teorias e métodos de decisão

no domínio do direito pressupõe o conhecimento de determinadas atitu-

des patológicas que tomadores de decisão (i) teriam, caso não pudessem

ser, de alguma maneira, limitados por metodologias de decisão, ou (ii)

que já revelam ter ao decidir, mesmo quando recorrem a métodos e

teorias amplamente reconhecidos na prática judicial. Neste último caso, o

apelo a métodos e teorias decisórias seria apenas uma maneira de camu-

flar a ampla liberdade de escolha já exercida em processos decisórios

7 ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation, op. cit., p. 18.

Teorias Contemporâneas do Direito 69

reais8. Para essas propostas, as atitudes de tomadores de decisão são, em

suma, um dado para o qual alternativas de solução são estruturadas.

Esse aspecto descritivo é crucial para que se possa explorar a

possibilidade de propostas teóricas e metodológicas desenvolvidas para

conduzir processos de tomada de decisão jurídica não produzirem, uma

vez incorporadas na prática judicial, qualquer resultado prático relevante

ou até mesmo o efeito oposto ao por elas visado. Nesse sentido, é possí-

vel argumentar que teorias e métodos complexos de decisão, em vez de

reduzirem os níveis de incerteza subjacentes a processos de solução de

casos difíceis no direito, podem aumentá-los descontroladamente. Para

tanto, basta que as propostas normativas de esforços teóricos não interna-

lizem em suas prescrições as atitudes dos tomadores de decisão diagnos-

ticadas como sintomas que pretendem ser combatidos. Este é comumente

o caso quando, a despeito das explicações pretensamente realistas sobre

as motivações de tomadores de decisão usadas para inspirar a construção

de modelos decisórios, idealizações são tomadas como referenciais para a

orientação da prática decisória. Haveria, nesse cenário, uma combinação

incoerente entre apelos teóricos ideais e não ideais, na medida em que,

enquanto motivações não ideais seriam usadas com o propósito de diag-

nosticar problemas, motivações ideais seriam as bases para prescrições9.

O pessimismo da percepção da prática é substituído por algum tipo de

otimismo – às vezes, ingênuo – na construção de mecanismos para lidar

com esses problemas. Com isso, em vez de teorias e métodos – especial-

mente os mais sofisticados – significarem mais barreiras, por exemplo, ao

exercício da discricionariedade judicial (o que normalmente teorias nor-

mativas da decisão jurídica almejam realizar), eles podem se tornar, na

verdade, mais munição para que juízes decidam como queiram simples-

mente porque “esquecem” em suas prescrições como tomadores reais de

decisão tendem, de fato, a agir. Casos como esse revelam um evidente

paradoxo. Um paradoxo da determinação10.

Maiores esforços de determinação não necessariamente levam a

maior limitação da discricionariedade. Ao contrário, como afirmado,

8 Para Schauer, esse é o principal desafio do realismo jurídico para se pensar na exis-

tência de um raciocínio tipicamente jurídico. V. SCHAUER, Frereick, Thinking like

a Lawyer, cap. 7.

9 POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian. Inside or outside the system? The University

of Chicago Law Review 80, p. 1743-1797, 2013. p. 1744.

10 Posner e Vermeule se referem a esse paradoxo como uma falácia do dentro/fora. A

referência sobre o paradoxo da determinação tem origem na economia. V. a respeito

BHAGWATI, Jagdish; BRECHER, Richard A.; SRINIVASAN, T. N. DUP Activities

and Economic Theory. European Economic Review 24, p. 291-307, 1984.

Fernando Leal 70

podem apenas tornar o processo decisório mais incerto. Tome-se, como

exemplo, a pluralidade de métodos disponíveis para orientar a interpreta-

ção constitucional no país e a dificuldade cada vez maior de antecipação

de resultados e dos caminhos da fundamentação de decisões no Supremo

Tribunal Federal. A tentativa de “controlar” a interpretação constitucional

por meio de métodos e teorias decisórias que apelam para elementos con-

trafactuais ou prescrições vagas, em vez de aumentar a previsibilidade

dos resultados, permite, na verdade, que fundamentos teóricos muito

diferentes possam ser livremente selecionados para justificar qualquer

decisão. O ministro que hoje se serve da concepção de direito como inte-

gridade de Dworkin é, amanhã, o que usará a interpretação teleológica, a

ponderação de princípios ou a teoria da justiça de John Rawls para justi-

ficar suas decisões. Ou várias dessas teorias ao mesmo tempo. É certo

que esse uso estratégico de teorias decisórias não é necessariamente um

problema

,

das próprias teorias. A compreensão ou a recepção inadequada

dos pressupostos de grandes edifícios teóricos é um motivo comum para

justificar o seu mau uso. Nada obstante, para o caso específico de teorias

que se apresentam como institucional e/ou constitucionalmente adequa-

das para um determinado contexto, o paradoxo da determinação se torna

um problema a ser levado a sério para se apreciar a qualidade de teorias

normativas sobre a decisão jurídica.

3 UM PROBLEMA METODOLÓGICO

O problema por trás do paradoxo da determinação não é de na-

tureza conceitual ou empírica. Não há necessariamente uma tensão entre

sugerir teorias decisórias inspiradas em alguns ideais e recorrer a dados

sobre o funcionamento do mundo para construi-las. Tampouco está o

problema nas prescrições em si ou no desenvolvimento de modelos com-

portamentais que não possuem implicações normativas ou não aspiram a

servir de base para a formulação de políticas públicas. O problema é me-

todológico; mais especificamente, de consistência – “consistência de

assunções e perspectivas”11. A inconsistência que gera o paradoxo da

determinação se localiza precisamente na divergência entre o tipo de

motivação pressuposto para que o modelo de solução desenhado para

lidar com certo problema do mundo funcione e o tipo de motivação diag-

nosticado como a base a partir da qual decisões são tomadas na realidade.

11 POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian, Inside or Outside the System?, op. cit., p. 1745.

Teorias Contemporâneas do Direito 71

É preciso, por isso, que aquilo que é endogenamente identificado como

comportamento padrão de certos atores seja incorporado nos esforços

prescritivos destinados a, por meio de métodos de tomada de decisão ou

incentivos específicos, reorientá-los para a realização de um estado de

coisas considerado desejável. Sem essa incorporação, diagnósticos sobre

o funcionamento do mundo tornam-se úteis apenas para anunciar o insu-

cesso de remédios prescritos para lidar com certos problemas, e não para

inspirar a prescrição dos remédios adequados. Quando isso acontece, as

teorias normativas da decisão jurídica perdem a força do apelo vinculado

à proposição de soluções para problemas reais e passam a contar, no limi-

te, apenas com a virtude de atores institucionais que podem se deixar

inspirar por prescrições não empiricamente informadas.

O risco de inconsistência teórica por trás do paradoxo da deter-

minação pode ser notado no direito não só quando as intuições de formu-

ladores de propostas normativas destinadas a lidar com ou neutralizar

certas disposições reais de tomadores de decisão são simplesmente deixa-

das de lado quando as suas sugestões sobre a tomada de decisão jurídica

adequada – a preocupação central deste texto – são desenvolvidas. Ele se

torna especialmente relevante quando estudos empiricamente informados

sobre o comportamento judicial proliferam, mas terminam por ser am-

plamente mencionados por teóricos mais para dar uma roupagem de so-

fisticação às suas propostas normativas do que para, por meio de efetiva

incorporação, inspirá-las. Neste contexto, o diálogo que juristas podem

tentar estabelecer, por exemplo, com a ciência política ou a economia

comportamental pode, antes de levar a teorias mais consistentes sobre a

compreensão ou a orientação da tomada de decisão judicial, “produzir um

tipo de esquizofrenia metodológica”12. Mais dados e mais informações

sobre o mundo não significam, como já alertado, teorias normativas ne-

cessariamente mais robustas para aumentar a qualidade das decisões de

juízes reais. Voltando mais uma vez ao tema da interpretação constitucio-

nal, a aproximação recente da teoria constitucional brasileira com a ciên-

cia política e o aumento da produção de dados sobre o funcionamento

real das instituições brasileiras não levarão necessariamente, se o argu-

mento de Posner e Vermeule faz sentido, a prescrições mais adequadas

para resolver problemas reais se, do ponto de vista exclusivo dos poten-

ciais da própria teoria de propor melhores soluções, os diagnósticos mais

precisos sobre o mundo forem desconsiderados na formulação dos crité-

rios de orientação da prática jurisdicional. Ao contrário, o risco é o de

proliferação de certo tipo de padrão de produção de trabalhos acadêmi-

12 Id.

Fernando Leal 72

cos. Neles, “the diagnostic sections of a paper draw upon the political

science literature to offer deeply pessimistic accounts of the ambitious,

partisan, or self-interested motives of relevant actors in the legal system,

while the prescriptive sections of the paper then turn around and issue an

optimistic proposal for public-spirited solutions”13.

O risco de ocorrência de um paradoxo da determinação pode ser

notado em dois exemplos. No primeiro, discute-se a real utilidade da

incorporação na prática judicial de métodos sofisticados de justificação

de decisões – como a fórmula do peso de Robert Alexy – quando se parte

de um diagnóstico sobre determinadas atitudes de tomadores de decisão –

ministros do STF, por exemplo – para manipular a máxima da proporcio-

nalidade com o intuito de fazer prevalecer os seus próprios interesses.

Este caso ilustra como problemas teóricos podem surgir quando se tenta

aproximar estudos sobre o comportamento real de tomadores de decisão

com teorias normativas da decisão judicial disponíveis que podem ser

consideradas puramente ideais, i.e. sem qualquer apelo empírico relevan-

te para a elaboração de suas recomendações. O paradoxo da determinação

é, com outras palavras, o produto potencial da tentativa de embasar empi-

ricamente teorias que não partem de diagnósticos sobre como agem efeti-

vamente tomadores de decisão. No segundo exemplo, questiona-se uma

teoria que recomenda a tribunais superiores o uso apropriado de prece-

dentes ou a construção de suas decisões de maneira tal que facilite o seu

potencial para funcionar como precedente para a solução de casos futu-

ros, mas que parte, ao mesmo tempo, da visão de que os seus membros

agem de maneira autointeressada e tendem a usar estrategicamente as

decisões da própria corte para fundamentar as suas visões sobre proble-

mas concretos. Neste caso, o paradoxo decorre da inconsistência entre

diagnóstico (pessimista) e prescrição (otimista, na medida em que depen-

de de comportamento virtuoso) na própria teoria desenvolvida para lidar

com atitudes que podem ser consideradas patológicas.

4 DOIS EXEMPLOS

A possibilidade de o paradoxo da determinação se aplicar à teo-

ria dos princípios está relacionada especificamente a um problema de

recepção, e não a alguma inconsistência interna da própria teoria. De fato,

não me parece simples identificar uma divergência entre diagnósticos

13 POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian, Inside or Outside the System? op. cit., p. 1745.

Teorias Contemporâneas do Direito 73

reais e pretensões normativas quando o tema é a utilidade de ferramentas

metodológicas como a fórmula do peso ou a lei de sopesamento para

orientar processos de tomada de decisão jurídica em que princípios jurí-

dicos estão em colisão. Isso porque Alexy não levanta nenhuma pretensão

de investigar em abstrato as disposições reais de tomadores de decisão

para, a partir delas, justificar a estrutura da ponderação e recomendar

métodos decisórios como fomentadores de racionalidade. A construção

do edifício teórico, ao contrário, é feita a partir de passos que pretendem

harmonizar conceitual e normativamente o instrumental metodológico

fornecido pela teoria dos princípios em um grande sistema, que inclui

desde uma concepção sobre a natureza do direito e uma teoria procedi-

mental da correção prática até uma concepção sobre o constitucionalismo

democrático14. Assim, a teoria não parece ser afetada por não incorporar

análises exógenas sobre o comportamento

,

dos atores que ela mesma pre-

tende influenciar – juízes, por exemplo – simplesmente porque não há

apelos sobre como esses atores, de fato, comportam-se em ambientes de

tomada de decisão jurídica. Há, na verdade, apelos à realidade tal qual ela

se apresenta quando, por exemplo, a fórmula do peso ergue a pretensão

de ser uma reconstrução racional do processo decisório do tribunal cons-

titucional federal alemão. Mas, mesmo neste caso, nada é dito sobre as

reais motivações dos julgadores quando são chamados a decidir.

Problemas de recepção, porém, podem ocorrer quando dados ou

certas intuições sobre motivações comportamentais de tomadores de de-

cisão são usados para apresentar um cenário problemático e, logo após, o

arsenal metodológico fornecido por Alexy é prescrito como antídoto.

Neste caso, o paradoxo da determinação poderia aparecer ao se tentar, de

um lado, recorrer a visões tipicamente realistas sobre o comportamento

judicial, e, de outro, receitar como soluções para esse problema métodos

decisórios incapazes de eliminar completamente a discricionariedade

judicial. Se se parte, por exemplo, da visão de que o material jurídico

autoritativo não determina o resultado de processos judiciais, mas, ao

contrário, que decisões judiciais podem ser mais adequadamente explica-

das a partir de influências de fatores não propriamente jurídicos, pressu-

põe-se que o direito não é necessariamente o motor da tomada de decisão.

Uma roupagem jurídica para certo resultado torna-se, nesse quadro, no

máximo uma tentativa de racionalização ex post de escolhas. Dado, po-

rém, que a teoria dos princípios não incorpora essa predisposição real de

tomadores de decisão em seus referenciais de justificação de decisões, a

14 Sobre esses passos do projeto teórico alexyano, v. ALEXY, Robert. Hauptelemente

einer Theorie der Doppelnatur des Rechts, especialmente p. 159 e ss.

Fernando Leal 74

inconsistência teórica surge quando são sugeridos mecanismos de racio-

nalidade que se sabe, desde o início, que tenderão a ser manipulados15.

O mesmo tipo de problema pode ser percebido quando se tenta

construir teorias normativas sobre o trabalho com precedentes que, apesar

de partirem de certos diagnósticos sobre certas disposições concretas de

tomadores de decisão, resumem-se apenas a exortações à adoção de com-

portamentos virtuosos inspirados em ideais como os de Estado de Direito

ou de democracia16. Se a descrição do funcionamento real de um tribunal

como o Supremo mostra uma predisposição para o uso completamente

estratégico e desparametrizado de decisões anteriores da corte17 e sugere

que os seus ministros buscam maximizar o seu poder, existe um problema

de consistência facilmente constatável quando teorias normativas sobre o

comportamento judicial sugerem mecanismos de vinculação horizontal a

precedentes, deferência a decisões do Legislativo e do Executivo e posturas

minimalistas. O problema neste ponto está, mais uma vez, na prescrição de

algo que já se sabe, de antemão, que o tribunal não fará – salvo quando

juízes tiverem motivações estratégicas para adotar qualquer um daqueles

comportamentos. O uso do mesmo habeas corpus (HC 95.290/SP) para

sustentar votos em sentidos opostos no HC 127.186/PR, relacionado ao

caso “lava jato”, a liminar concedida pelo ministro f*ck no MS 31.816/DF,

que obrigava o Congresso Nacional a apreciar vetos presidenciais na ordem

cronológica em que eram apresentados18, e o julgamento da constituciona-

lidade da criação do instituto Chico Mendes de Conservação de Biodiver-

sidade (ADI 4029/DF)19 são, respectivamente, exemplos de como a reali-

15 LEAL, Fernando. Irracional ou Hiper-racional? A ponderação de princípios entre o

ceticismo e o otimismo ingênuo, p. 187.

16 V. para problemas da realidade norte-americana, POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian.

Inside or Outside the System?, op. cit., p. 1780-1783.

17 V., por exemplo, o retrato feito em LEAL, Fernando. Uma Jurisprudência que serve

para tudo. Disponível em: .

Acesso em: 20 dez. 2015.

18 A liminar foi revertida em plenário, por maioria apertada. V.

stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=232098>. Acesso em 14 jan.

2015.

19 No caso, discutia-se essencialmente a necessidade de a conversão de medidas provisó-

rias em lei observar rigorosamente a exigência de exame e parecer prévio por uma

comissão mista de deputados e senadores, tal qual determina o art. 62, § 9º, da Consti-

tuição Federal, ou se uma Resolução do Congresso poderia criar temperamentos no

comando constitucional (no caso, a Resolução 1/2002 dispunha que, decorridos 14 dias

sem deliberação pela comissão mista de deputados e senadores exigida pelo referido

dispositivo constitucional, o parecer poderia ser apresentado individualmente pelo re-

lator perante o plenário). O STF, por maioria, entendeu que o art. 62, § 9º, CF, deveria

ser sempre observado – e isso poderia ser razão suficiente para a declaração de in-

Teorias Contemporâneas do Direito 75

dade se afasta das prescrições da suposta teoria sobre o comportamento

judicial acima exposta. E um dos motivos simples para justificar a irrele-

vância da teoria reside no fato de que a descrição sobre o funcionamento da

realidade revela que aquilo que efetivamente impulsiona as decisões dos

ministros é incompatível com o endosso das sugestões normativas da teo-

ria, ancoradas em idealizações e conceitualismos20.

5 CONCLUSÃO

O paradoxo da determinação é um problema metodológico que

afeta a qualidade de teorias normativas que almejam lidar com a incerteza

normativa por meio de fixação de regras de decisão ou roteiros de argu-

mentação supostamente adequados a certa realidade. O problema, de fato,

surge quando as descrições sobre o mundo não informam as recomenda-

ções dirigidas a atores institucionais como juízes e legisladores. Cria-se,

assim, um espaço vazio entre os diagnósticos pretensamente realistas so-

bre atitudes ou crenças de certos atores institucionais e as idealizações,

que não partem daqueles diagnósticos, por trás das sugestões sobre como

tomadores de decisão devem agir em casos para os quais o direito não

fornece resposta precisa. Em um contexto acadêmico em que cada vez

mais dados sobre o funcionamento real das instituições são produzidos e

em que as lentes de outras disciplinas são usadas para a melhor compreen-

são do mundo, o paradoxo da determinação não deve ser encarado como

argumento para a rejeição de aproximações entre o direito e outras áreas21.

Ao contrário, ele deve ser compreendido como um alerta importante para

que os diálogos entre teorias jurídicas normativas e as explicações forne-

cidas por outras ciências sobre o comportamento de determinados atores

sejam metodologicamente rigorosos e, assim, possam produzir resultados

efetivamente relevantes.

constitucionalidade da lei que criou o instituto Chico Mendes. Nada obstante, alguns

ministros apresentaram fundamentos mais amplos para a decisão de inconstitucionali-

dade, especialmente juízos sobre a urgência e relevância da MP que criou o referido

instituto, que, no caso, levaram o STF a declarar a lei inconstitucional também porque

era o produto de uma medida provisória que não observava os requisitos constitucio-

nais para a sua edição.

20 Entende-se conceitualismo como a tentativa de extrair parâmetros de interpretação

diretamente de compromissos conceituais abstratos, como democracia, Estado de Di-

reito, constitucionalismo ou separação de poderes. Assim VERMEULE, Adrian.

Judging under Uncertainty, p. 2.

21 POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian. Inside or Outside the System, op. cit., p. 1797.

Fernando Leal 76

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Teorias Contemporâneas do Direito 77

POSITIVISMO NORMATIVO OU NOVOS

DESENHOS INSTITUCIONAIS?

UMA ANÁLISE DE DUAS ALTERNATIVAS

PARA SE CONTESTAR A SUPREMACIA DAS

CORTES CONSTITUCIONAIS

Thomas Bustamante1

Sumário: 1. Introdução. 2. A Rota Institucional; 2.1 A Resposta de Jeremy

Waldron à teoria dos “precomprometimentos constitucionais”; 2.2 Uma visão

alternativa: as cortes como fomentadores da deliberação pública. 3. A Rota In-

terpretativa. 4. Conclusões. 5. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Tem-se observado, na literatura de direito constitucional, nos

novos desenhos institucionais propostos em alguns países e na filosofia

política recente, principalmente sob a influência de Jeremy Waldron, ao

menos dois caminhos para se realizar uma crítica à instituição da jurisdi-

ção constitucional e ao primado das cortes constitucionais na interpreta-

ção da constituição. Na ausência de uma nomenclatura mais adequada,

podemos denominar essas duas vias de “rota institucional” e de “rota

interpretativa” para desconstruir o princípio da supremacia judicial.

1 Professor da Faculdade de Direito da UFMG. Bolsista de Produtividade em Pesquisa

– Nível 2, do CNPq. Este trabalho foi escrito durante estágio pós-doutoral na Univer-

sidade de São Paulo, sob a supervisão do Prof. Titular Ronaldo Porto Macedo Júnior e

com financiamento da FAPESP. Foi beneficiado, ainda, por recursos de fomento à

pesquisa do CNPq (Edital Universal 2013) e do Programa Pesquisador Mineiro (PPM-

2014) da FAPEMIG.

Thomas Bustamante 78

A rota institucional, por um lado, é justificada, no plano teórico,

por uma crítica dura à legitimidade democrática dos sistemas jurídicos com

um controle de constitucionalidade “forte” – combinada, por vezes, com a

defesa de um modelo de “diálogos institucionais” entre os poderes legislati-

vo e judiciário – e, no plano prático, por meio de propostas de modelos frá-

geis de controle de constitucionalidade (“weak judicial review”), onde as

cortes constitucionais carecem da prerrogativa de dar a última palavra sobre

o sentido e o alcance dos direitos fundamentais previstos na constituição.

A rota interpretativa, por outro lado, é defendida, no plano teó-

rico, por meio de um “positivismo normativo” ou “político” – que oferece

uma série de argumentos morais em favor de um método de identificação

do direito que separe as questões de “autoridade” das questões de “justi-

ça” – e, no plano prático, por meio de um neoformalismo interpretativo

que se aproxima de uma leitura minimalista da Constituição.

O que pretendo discutir nesse trabalho é se essas duas estraté-

gias, que buscam fundamento em uma série de considerações morais

sobre a legitimidade da autoridade das cortes constitucionais, são compa-

tíveis entre si, ou se elas devem ser entendidas como inaplicáveis simul-

taneamente.

Sustentarei, neste ensaio, que embora ambas as estratégias ar-

gumentativas possam ser justificadas pela concepção de democracia de

Waldron, um dos mais bem sucedidos filósofos do direito que vem refle-

tindo sobre a legitimidade da jurisdição constitucional, elas não devem

ser adotadas simultaneamente, pois produzem resultados conflitantes no

âmbito da jurisdição constitucional.

2 A ROTA INSTITUCIONAL

2.1 A Resposta de Jeremy Waldron à Teoria dos

“Precomprometimentos Constitucionais”

A rota institucional que se desenvolverá aqui parte de algumas

críticas adotadas por Jeremy Waldron em Law and Disagreement e uma

série de outros escritos em que constrói o seu argumento a partir da dife-

renciação entre as questões de autoridade e as questões de justiça no âm-

bito dos nossos desacordos morais e da determinação do conteúdo dos

direitos que nós temos em uma comunidade política. Enquanto as últimas

(questões de justiça) se referem à correção substancial de uma determina-

Teorias Contemporâneas do Direito 79

da solução para um desacordo moral, as primeiras (questões de autorida-

de) se referem à titularidade do poder de alcançar essa solução. Não se

discute, neste âmbito, se há ou não uma “resposta correta” para nossas

contendas morais2, mas apenas quem tem legitimidade para decidir, e

qual deve ser o procedimento mais equânime para se alcançar essa deci-

são.

Embora reconheça a importância das teorias da justiça no âmbi-

to da distribuição dos bens sociais e dos direitos em uma comunidade

política, Waldron acredita que a teoria do direito carece hoje mais de uma

teoria da autoridade, pois as democracias contemporâneas estão caracteri-

zadas por um profundo e insuperável desacordo de boa fé sobre questões

de justiça e de moralidade política, que inviabiliza o consenso e exige um

mecanismo de agregação da vontade coletiva que seja capaz de a um só

tempo coordenar a ação dos participantes da sociedade e respeitar os juí-

zos e convicções morais de boa fé adotados por cada um dos cidadãos

nela representados.

Muito se poderia dizer sobre a teoria da autoridade proposta por

Waldron, mas temos de resistir a essa tentação porque uma tal reflexão

ultrapassaria os propósitos deste ensaio, que se destina a examinar princi-

palmente um modelo alternativo ao controle de constitucionalidade tradi-

cional, que não é de todo incompatível com algumas críticas que Waldron

aduziu à jurisdição constitucional.

Merece menção especial, porém, a réplica que Waldron aduz a

um dos argumentos recorrentes em defesa da supremacia judicial no âm-

bito da interpretação da constituição.

,

Trata-se da visão que atribui à cons-

tituição e às cortes constitucionais uma justificação baseada em um pre-

comprometimento racional e compartilhado do próprio povo, entendido

enquanto um conjunto de cidadãos soberanos livres e iguais em um mo-

mento fundante em que realizaram as suas “escolhas constitucionais”

(WALDRON, 1999, p. 258). Essa concepção foi defendida na literatura

jurídico-filosófica contemporânea por Samuel Freeman, que justifica a

prática da jurisdição constitucional nesse tipo de precomprometimento

coletivo em relação a determinados direitos, na medida em que os pró-

prios autores da constituição – um conjunto de cidadãos que se reconhe-

cem como livres e iguais – antecipa a possibilidade de violações a esses

2 Waldron considera, a rigor, que e existência de objetividade no campo da moral é

irrelevante do ponto de vista político, pois ainda que se considere haver respostas cor-

retas no âmbito da moralidade política não teríamos acesso imediato a elas, de sorte

que permaneceria o desacordo razoável acerca dos direitos e permaneceria a necessidade

de um procedimento para resolver esses desacordos (WALDRON, 1999, p. 164-183).

Thomas Bustamante 80

direitos por parte das maiorias em um momento futuro. “Ao concordarem

com a prática da revisão judicial, eles [os cidadãos] amarram a si pró-

prios ao acordo unânime sobre os seus iguais direitos básicos que espe-

cificam a soberania deles. A judicial review é então a única forma de

proteger o seu status de cidadãos iguais” (FREEMAN, 1990, p. 353-4).

Uma das formas de ilustrar esse argumento é com uma metáfora

que Homero emprega na Odisseia. Para resistir à tentação do canto das

sereias, que poderiam seduzi-lo a jogar sua embarcação em direção às

rochas, Ulisses ordena à sua tripulação que o amarre ao mastro e o prenda

com ainda mais força caso ele implore para ser libertado. A posição da

Ulisses seria análoga, portanto, à do consumidor de álcool que entrega as

chaves do seu veículo a um amigo no início de uma festa, para que este a

retenha caso ele venha a decidir dirigir sob o efeito do álcool no momento

de voltar para casa. Sabedor de que depois de consumir álcool não conse-

guirá realizar o melhor juízo sobre a sua condição de conduzir, o próprio

motorista voluntariamente decide no momento t1 abdicar de sua autono-

mia no momento t23.

Contra esse argumento, Waldron oferece uma série de conside-

rações. Duas delas merecem a nossa atenção.

A primeira delas é de que o argumento só funcionaria se a auto-

vinculação realizada por Ulisses pudesse ser garantida por uma “estrutura

externa” capaz de limitar a vontade do povo por meio de uma espécie de

“mecanismo causal”. Nesse sentido, Waldron traz à baila a asserção de

Elster de que “um precomprometimento só tem efeito se ele é ‘fixado por

algum tipo de processo causal no mundo exterior’” (WALDRON, 1999,

p. 261). Esse tipo de mecanismo causal, no entanto, não está à disposição

nem de Ulisses e nem muito menos do povo no âmbito da interpretação

das questões constitucionais. Aliás, não está disponível nem mesmo no

exemplo do condutor, pois nesse caso o precomprometimento “opera

através de um juízo do amigo e nessa medida a sua operação no momen-

to t2 não está inteiramente sob o controle do consumidor de álcool no

momento t1” (WALDRON, 1999, p. 261).

Quando alguém decide em um momento t1 vincular a si próprio

em um momento t2, na ausência de um mecanismo externo e causal,

3 Nesse sentido, escreve Holmes: “Uma constituição é como Pedro sóbrio enquanto o

eleitorado é como Pedro bêbado. Os cidadãos precisam de uma constituição, como

Ulisses precisou prender a si próprio ao mastro. Se fosse permitido aos eleitores ter

tudo o que eles querem, ele inevitavelmente iriam conduzir a si próprios ao náufrago.

Ao vincular a si próprios a regras rígidas, eles podem alcançar melhor os seus fins

coletivos de longo prazo” (HOLMES, 1995, p. 86).

Teorias Contemporâneas do Direito 81

sempre haverá de ser realizado um juízo sobre se estão presentes no mo-

mento t2 as condições que o agente previu como limitações legítimas à

sua ação no momento t1. As condições para a operacionalização da auto-

limitação são em grande medida difíceis de antever e raramente são in-

controversas. Exatamente por isso, segundo Waldron, deixam de ser uma

forma de autogoverno, pois a ideia de precomprometimentos constitucio-

nais vai de encontro à noção democrática de que esses juízos têm que ser

realizados pelo povo, e não por terceiros.

Com base na distinção entre as formas de governo de Aristóte-

les, Waldron caracteriza como “aristocracia” uma estrutura decisória em

que esse tipo de juízo é realizado por um pequeno grupo de juízes não

eleitos e nem sujeitos a um controle procedimental pelo próprio provo. A

única diferença entre as diferentes formas de governo é sobre a quem

compete o juízo sobre a criação e a aplicação das normas. E, para Wal-

dron, “juízos prefiguram desacordos, e na política a questão é sempre

como desacordos entre os cidadãos devem ser resolvidos” (WALDRON

1999, p. 264). Questões políticas são sempre relativas à realização de

juízos, e o núcleo da pretensão democrática é de que “o povo tem a titu-

laridade de governar a si mesmo segundo os seus próprios juízos”

(WALDRON, 1999, p. 264).

A segunda consideração se refere, por sua vez, a uma distinção

entre a “fraqueza de vontade” e os “desacordos razoáveis” no momento

de identificação dos limites estabelecidos nos momentos constitucionais.

No momento em que um consumidor de álcool entrega a chave a seu

companheiro, ou em que um fumante determinado a parar esconde um

pacote de cigarros para não cair na tentação de fumá-los, ou uma pessoa

com tendência a dormir demais coloca o despertador longe da sua cama

para não cair na tentação de apertar o botão “snooze”, estamos lidando

com categorias que Waldron classifica como uma “patologia decisória”

ou uma “akrasia”. Em todas essas situações, não há qualquer dúvida por

parte do agente da autovinculação acerca da conduta que ele considera

desejável ou correta, e a única razão do precomprometimento é ele ante-

ver uma situação em que a sua capacidade de juízo estará patologicamen-

te afetada (WALDRON, 1999, p. 266-7).

Segundo Waldron, essa não é, porém, a situação típica dos ale-

gados precomprometimentos constitucionais. O âmbito da jurisdição

constitucional é caracterizado pelas seguintes condições: 1) “O povo

compromete a si próprio na sua constituição (por uma supermaioria)

com certas fórmulas bastante abstratas sobre direitos”; 2) “Um legisla-

dor aprova uma medida que supostamente viola a proposição constitu-

Thomas Bustamante 82

cional”; 3) “Uma corte, decidindo por maioria simples, sustenta que a

promulgação do legislador é inconstitucional. Quatro entre nove juízes

dissentem e sustentam, porém, que a legislação não deveria ser anulada”

(WALDRON, 1999, p. 267).

De acordo com Waldron, em todas essas decisões, há inevita-

velmente um desacordo razoável acerca do que é que “torna uma provi-

são moralmente não-atraente” (WALDRON, 1999, p. 267). Para o autor,

“é o mesmo tipo de desacordo do início ao fim”, em todas as três fases, e

somente um “idiota” (sic) poderia dizer que os desacordos razoáveis que

se instauram sobre questões constitucionais são comparáveis à estória de

Ulisses e as sereias:

Ulisses está seguro de que ele quer escutar o canto das sereias, mas

não quer responder aos estímulos do canto; o povo, no nosso exem-

plo, está dilacerado. Se Ulisses fosse de alguma maneira desamarrar

a si mesmo e se preparar para mergulhar e nadar em direção às se-

reias, estaria muito claro para a sua tripulação que isso é exatamente

o que ele ordenou que ela o proibisse de fazer; mas na maioria dos

casos constitucionais, há opiniões diferentes entre os cidadãos sobre

se a legislação em questão

,

é o que eles quiseram (ou o que eles deve-

riam querer) proibir em um momento fundacional. (...) Um ‘precom-

prometimento’ constitucional nessas circunstâncias é portanto não o

triunfo de uma racionalidade preemptiva que aparece nos casos de

Ulisses, do fumante ou do condutor bêbado. Ele é, ao contrário, a

predominância artificialmente sustentada de uma visão na comunida-

de política sobre outras visões, enquanto as questões morais comple-

xas permanecem não resolvidas. Impor o modelo de precomprometi-

mento nessa situação se assemelha mais a Procustes do que a Ulisses.

(WALDRON, 1999, p. 268)

Waldron rejeita, portanto, o argumento de que a jurisdição

constitucional poderia ser justificada por meio de um precomprometi-

mento do povo no momento fundacional da constituição, e acredita que

nem mesmo uma defesa mais elaborada da jurisdição constitucional po-

deria se fundamentar em uma democracia. Nesse sentido, oferece também

uma réplica ao argumento – aduzido por Ronald Dworkin e Stephen

Holmes, entre outros – de que a jurisdição constitucional se justificaria

porque o governo majoritário depende de certas condições deliberativas

para funcionar adequadamente4. Embora considere esse argumento atrati-

4 Dworkin se refere a essas circunstâncias da deliberação como “condições democráticas”

(DWORKIN, 1996).

Teorias Contemporâneas do Direito 83

vo, Waldron sustenta que ele depende de ao menos uma entre duas pre-

missas que não se verificam na realidade dos sistemas constitucionais

contemporâneos: 1) a pressuposição de que o povo teria uma concepção

“constante e unânime” do que seja um processo adequado de decisão

majoritária e das “condições necessárias para a sua efetiva realização”;

ou 2) a pressuposição de que as minorias “teriam razão para temer que

qualquer revisão legislativa sobre as regras acerca da liberdade de ex-

pressão ou do direito de oposição seria uma forma de esmagar ou silen-

ciar o dissenso” (WALDRON, 1999, p. 279).

Para Waldron, nenhuma dessa dessas pressuposições é verificá-

vel. Quanto à primeira, o autor aduz que a persistência de profundos de-

sacordos sobre as condições adequadas da deliberação é uma característica

saudável e insuperável das democracias. Mesmo quando as sociedades

divergem quanto ao sistema eleitoral, ao financiamento de campanhas, e

uma série de outros pontos mais específicos, uma coisa não podemos

afirmar: “não podemos descrever esse processo em termos de um conjun-

to de precomprometimentos populares unívocos a uma forma particular

de processo de decisão” (WALDRON, 1999, p. 280). Quanto à segunda,

Waldron distingue ao menos duas situações: i) a dos países em que tais

liberdades ainda não existem, mas existe uma clara intenção do povo em

assegurá-la, como os países do leste Europeu que, no momento em que

sua obra era escrita, estavam passando por um processo de constituciona-

lização; e ii) a dos países onde essas liberdades já estão amplamente re-

conhecidas na tradição. No caso dos primeiros, Waldron acredita que

uma fiscalização da constitucionalidade dessas liberdades (por uma corte)

seria na melhor das hipóteses uma proteção extremamente frágil, e que

teria ainda o preço de impor ao povo uma estrutura constitucional muito

rígida que dificultaria o estabelecimento democrático das tradições cons-

titucionais pelo próprio povo. No caso dos últimos, essas liberdades já

estão estabelecidas e foram conquistadas “apesar dos esforços do judiciá-

rio” (WALDRON, 1999, p. 281).

A crítica que Waldron apresenta às teorias que defendem a ju-

risdição constitucional como um precomprometimento do povo em defe-

sa de direitos invocáveis contra si próprio, embora tenha encontrado críti-

cos à altura – por exemplo, Waluchow (2005) – constitui um dos argu-

mentos mais robustos que podem ser aduzidos contra a jurisdição consti-

tucional, e chama a atenção para dois aspectos importantes que não cos-

tumam ser levados a sério pelos defensores de um modelo forte de con-

trole de constitucionalidade: 1) a presença maciça de desacordos razoá-

veis sobre as questões constitucionais, não apenas na sociedade em geral,

mas também no interior da própria corte; e 2) a inexistência de um méto-

do de agregação melhor do que o princípio majoritário no interior das

Thomas Bustamante 84

cortes, uma vez que os juízes, assim como legisladores e como o cidadão

em geral, precisam resolver os seus desacordos com base no princípio

majoritário. Por que, então, substituir uma maioria legislativa por uma

maioria judicial?

2.2 Uma Visão Alternativa: as Cortes como Fomentadores

da Deliberação Pública

Embora a crítica de Waldron à defesa da jurisdição constitucio-

nal como precomprometimento esteja longe de ser incontroversa, parti-

remos da premissa neste trabalho de que ela produz um bom argumento

contra a jurisdição constitucional forte.

Não obstante, ainda que Waldron esteja correto nesse ponto, é

possível se pensar também em outros argumentos para justificar o contro-

le judicial de constitucionalidade das leis. Entre eles, Dworkin apresenta

uma série de argumentos que gozam de uma ampla aceitação por parte da

comunidade jurídica no Brasil. Para Dworkin, a jurisdição constitucional

é uma “característica marcante” da nossa vida política, “porque ela força

o debate político a incluir argumentos sobre questões de princípio, não

apenas quando um caso chega à corte, mas muito antes e muito depois”

(DWORKIN, 1985, p. 70). A existência da corte poderia elevar o nível da

deliberação pública e forçar a sociedade a tomar posição sobre questões

morais que muitas vezes são evitadas no debate político majoritário.

Como tive oportunidade de aduzir em outro trabalho (BUSTA-

MANTE, 2016, seção 3.3.5), esse argumento é diferente do argumento

que Dworkin aduz em outra ocasião sobre as denominadas “condições

democráticas” (DWORKIN, 1996, p. 24) – segundo o qual uma concep-

ção adequada de democracia deveria estabelecer uma série de condições

democráticas que seriam imprescindíveis para garantir os ideais liberais

de “igual respeito e consideração” por cada um dos membros da comuni-

dade política. Como vimos acima, Waldron rebate esse argumento ao

tratar da concepção que descreve a jurisdição constitucional como pre-

comprometimento, pois o reconhecimento dessas condições não implica

automaticamente a supremacia judicial, uma vez que há um amplo e per-

sistente desacordo sobre quais são essas condições e como elas hão de ser

interpretadas, e as possibilidades de erros e acertos por juízes e legislado-

res de boa fé são simétricas.

Bem entendido, o argumento que pretendemos tratar agora for-

nece uma justificação instrumental da jurisdição constitucional que tem

uma estrutura semelhante à denominada Tese da Justificação Normal, que

Raz apresenta para a autoridade em geral. Segundo essa tese,

Teorias Contemporâneas do Direito 85

a forma habitual de estabelecer que uma pessoa tem autoridade sobre

outra envolve a demonstração de que o alegado sujeito tem melhores

condições de obedecer às razões que se aplicam a ele se ele aceitar as

diretivas da alegada autoridade como vinculantes e tentar segui-las,

ao invés de tentar seguir as razões que se aplicam a ele diretamente.

(RAZ, 1986, p. 56)

No modelo de Raz, a autoridade funciona como uma mediadora

entre o sujeito e as razões que ele próprio tem para agir neste ou naquele

sentido. A autoridade presta ao sujeito um serviço ao ponderar adequa-

damente essas razões e ao facilitar o acesso do indivíduo a elas quando,

por alguma circunstância, ele tiver em uma posição que torne essa ponde-

ração de razões problemática ou dificultada5.

Entendida sob essa perspectiva, a corte constitucional age a ser-

viço dos cidadãos em geral, já que ela está em melhor posição para pon-

derar todas as razões de princípio que são aplicáveis a esses cidadãos

mesmo quando elas não estejam visíveis no debate político ordinário. A

,

decisão da corte é relevante porque ela facilita o povo a obedecer às ra-

zões de princípio que ele tem para atuar de certa maneira. Tal como acon-

tece na “Normal Justification Thesis” de Raz, as diretivas da corte consti-

tucional derivam a sua força das considerações que as justificam (RAZ,

1986). É porque a decisão da corte é baseada em princípios que nem são

sempre considerados nas deliberações políticas que nós devemos aceitar a

autoridade das cortes.

Esse argumento, embora importante, não recebeu suficiente

atenção de Waldron. Em Law and Disagreement, Waldron acredita rebater

o argumento de que a corte pode melhorar a qualidade da deliberação

pública e “aumentar o caráter participativo da nossa política” por meio

de contraexemplos. Ele aduz que Dworkin está tentando fazer “afirmações

empíricas apressadas sobre a qualidade do debate público” (WALDRON,

1999, p. 290), e limita-se a dizer que essas afirmações empíricas são im-

plausíveis porque elas não resistem a um exame dos contraexemplos en-

contrados em países onde não há jurisdição constitucional. Nesse sentido,

Waldron compara os debates sobre o aborto realizados nos Estados Unidos,

no interior da Suprema Corte, com os debates parlamentares em países

como o Reino Unido e a Nova Zelândia, onde o próprio parlamento esta-

beleceu uma legislação de legalização do aborto a partir de um discurso

moral mais genuíno e menos impregnado de conceitos jurídicos, doutri-

nas, precedentes e apelo ao aparato dogmático típico dos juristas. Wal-

5 Desenvolvo esse argumento com mais profundidade em Bustamante (2016).

Thomas Bustamante 86

dron acredita, nesse sentido, que questões morais devem ser enfrentadas

diretamente, sem o intermédio de doutrinas jurídicas. Não devem ser

abordadas como questões “interpretativas” onde o resultado do processo

decisório é assimilado a uma interpretação de conceitos jurídicos abstra-

tamente previstos na constituição (WALDRON, 1999, p. 290).

Nessa réplica de Waldron, acredito que seja possível encontrar

duas asserções independentes: 1) do ponto de vista empírico, o exemplo

da deliberação parlamentar sobre o aborto no Reino Unido e na Nova

Zelândia constitui um indicador importante da ausência de plausibilidade

das afirmações empíricas de Dworkin sobre a contribuição que as cortes

dão para o debate público sobre direitos; 2) as questões sobre direitos em

uma comunidade política não devem ser encaradas como questões inter-

pretativas, pois essa alternativa retira o foco da deliberação moral que

tipicamente acontece nos debates legislativos.

Dessas duas asserções, ao menos a segunda delas é difícil de se

sustentar em qualquer sistema jurídico submetido a uma Declaração de

Direitos (Bill of Rights). O ponto central de Waldron pode ser expresso

na seguinte citação:

A argumentação legislativa é uma forma de argumentação em nome

de toda a sociedade sobre questões morais importantes quando é

apropriado que tal argumentação não esteja sob a constrição de tex-

tos existentes, doutrinas ou precedentes. Os legisladores abordam o

problema diretamente, como se fosse pela primeira vez (mesmo quan-

do seja um assunto que tenha chegado a eles diversas vezes). É claro,

é importante para eles entender como a decisão a que eles chegam irá

se ajustar ao direito adjacente em outros assuntos. Mas isso é diferen-

te de uma obrigação de uma corte de reconciliar a sua decisão com

decisões prévias sobre o mesmo assunto e assuntos similares. Quase

sempre legisladores estão em uma posição de raciocinar sobre ques-

tões morais diretamente, nos seus méritos. Membros do legislativo fa-

lam diretamente sobre os assuntos envolvidos, de uma maneira que é

no mais das vezes livre da distração de doutrinas e precedentes jurí-

dicos. (WALDRON, 2009, p. 60)

Diferentemente de Waldron, tenho dúvidas sobre se os legisla-

dores podem evitar o tipo de leitura interpretativa das Cartas de Direitos

que parece pouco atrativa para ele. Sua visão acerca do raciocínio legisla-

tivo não me parece correta porque não há razão para se crer que os legis-

ladores ordinários estejam, de modo decisivo, mais livres do que juízes

para ponderar argumentos de princípio e se afastar dos valores morais da

Teorias Contemporâneas do Direito 87

comunidade entrincheirados na constituição. Enquanto os legisladores

entenderem a sua atividade prática como fiel aos princípios morais com-

preendidos na Carta de Direitos, eles devem interpretar esse documento

como uma norma que é juridicamente vinculante, e a sua competência

para realizar juízos morais como juridicamente regulada. Ainda que eles

não vejam a si mesmos como subordinados aos juízos realizados por uma

corte suprema, isso não evitará o aparecimento de argumentos baseados

em “precedentes” ou “doutrinas jurídicas”, já que as assembleias legisla-

tivas não estarão levando a sério os direitos se elas declinarem de sua

tarefa de considerar suas leis anteriores e a justificação pública das deci-

sões de autoridade tomadas no passado, no presente e no futuro. Quando

legisladores enfrentam um desacordo moral, ao contrário de considera-

ções pragmáticas sobre políticas públicas, eles estão tão vinculados pelas

exigências de consistência e integridade quanto as supremas cortes estão.

Não se pode esquecer, aqui, que o raciocínio de uma suprema corte em

casos difíceis não é tão estritamente vinculado quanto o de um juiz ordi-

nário que trabalha em um sistema de precedentes vinculantes. Como

aponta Dworkin, é muito plausível sustentar, como ele faz com sua

“rights thesis”, que “a história institucional funciona não como uma

constrição nos juízos políticos, mas como um ingrediente desses juízos”

(DWORKIN, 1978, p. 87). Se Dworkin está correto, então, a prática do

precedente judicial não é baseada na autoridade dos juízes anteriores, mas

sim na doutrina da equidade, que exige que os tribunais tratem casos se-

melhantes de maneira semelhante e tenham igual consideração pelas par-

tes (DWORKIN, 1978, p. 131). Se interpretarmos a vinculação dos juízes

dessa maneira, não é crível que os legisladores estejam vinculados de

uma maneira qualitativamente diferente. É possível, portanto, que a cren-

ça de Waldron de que o raciocínio legislativo é sempre diferente do das

supremas cortes, quando ambas consideram direitos fundamentais, seja

pouco acurada, já que ambas são sensíveis à história institucional e à

moralidade pública da comunidade.

Ainda que se possa encontrar certas distinções entre os proces-

sos de raciocínio dos legisladores e das cortes, é igualmente fácil encon-

trar importantes pontos comuns que tornam difícil aceitar a pretensão de

Waldron de que ao interpretar a Carta de Direitos os legisladores estejam

mais preparados para enfrentar questões morais em si mesmas, livres de

constrições jurídicas. Isso porque em todos esses casos a autoridade deci-

sória terá uma obrigação discursiva de justificar publicamente a sua deci-

são de um modo a demonstrar que a decisão é “ao menos consistente com

comprometimentos constitucionais, incluindo o comprometimento com os

direitos” (DYZENHAUS, 2009, p. 52).

Thomas Bustamante 88

Parece-nos equivocada, portanto, segunda premissa de Wal-

dron, que sustenta que a determinação do conteúdo dos direitos previstos

em uma constituição ou em uma carta de direitos deve ser feita de manei-

ra “não-interpretativa”.

Resta, portanto, apenas a primeira asserção, consistente na

afirmação empírica de que as cortes, ao deliberarem e forçarem a delibe-

ração pública sobre argumentos de princípio (que muitas vezes, por ra-

zões estratégicas, não entram no jogo da deliberação parlamentar se não

forem devidamente estimulados), contribuem para incrementar o debate

na esfera pública. O que dizer desse argumento apresentado por Dworkin?

Nesse ponto, não creio que Waldron tenha oferecido, seja em

Law and Disagreement ou em escritos posteriores, uma réplica adequada

,

a essa hipótese de justificação instrumental da existência da jurisdição

constitucional. Com efeito, ele se limita a contrapor o exemplo da alta

qualidade da deliberação nos projetos de lei que levaram à legalização do

aborto no Reino Unido de na Nova Zelândia, sem qualquer tipo de análise

estatística ou investigação empírica sobre se essa conclusão pode ser

generalizada para além desse único exemplo. A impressão que passa da

leitura de seu escrito posterior, “The Core of the Case Against Judicial

Review”, é de que nem mesmo Waldron está totalmente satisfeito com

esse contra-argumento, já que ele parece ver algum sentido na existência

de um sistema frágil de jurisdição constitucional e faz ressalvas, ao longo

de todo o seu artigo, para deixar claro que a sua crítica está limitada aos

sistemas de “strong judicial review”, isto é, aos sistemas jurídicos onde

está institucionalizada a supremacia judicial e as cortes gozam da prerroga-

tiva de negar aplicação à lei e torná-la nula de pleno direito (WALDRON,

2006, p. 1353-1359).

Em seu celebrado ensaio mais recente, Waldron parece tempe-

rar um pouco a sua crítica à jurisdição constitucional, pois já não afirma

mais que o controle de constitucionalidade é intrinsecamente antidemo-

crático e formula sua crítica de maneira condicional, de modo que a obje-

ção ao controle de constitucionalidade só teria lugar diante de quatro

pressuposições: 1) a presença de instituições democráticas em razoável

funcionamento, incluindo-se uma legislatura eleita democraticamente; 2)

um conjunto de instituições judiciais em bom funcionamento e decidindo

disputas de acordo com o império do direito (rule of law); 3) um com-

prometimento por parte da maior parte das pessoas na sociedade e por

parte da maioria dos oficiais que aplicam o direito com os direitos dos

indivíduos e das minorias; e 4) um desacordo persistente, substancial e de

boa fé sobre esses direitos e suas implicações concretas (WALDRON,

2006, p. 1360). Uma crítica à jurisdição constitucional só é atingida pelos

Teorias Contemporâneas do Direito 89

argumentos de Waldron diante dessas situações, e se estivermos falando

de um sistema forte de jurisdição constitucional.

Em The Core of the Case e escritos posteriores, Waldron não

contesta abertamente a premissa empírica de Dworkin com a qual esta-

mos trabalhando, e que nos parece intuitivamente verdadeira. Como se

pode ler no excerto adiante, o argumento de Waldron é muito mais mode-

rado do que em sua formulação original:

Um argumento que eu respeito, em favor de algum tipo de poder de

revisão judicial, segue a seguinte formulação: pode ser que nem sem-

pre seja fácil para os legisladores verem quais questões de direito es-

tão entrelaçadas em uma proposta legislativa trazida diante deles;

pode ser que não seja sempre fácil para eles antever quais questões

de direito podem surgir da sua subseqüente aplicação. Então parece

útil haver algum tipo de mecanismo que permita aos cidadãos trazer

essas questões à atenção de todos na medida em que elas aparecem.

Mas esse é apenas um argumento para a jurisdição constitucional

frágil, e não para a forma forte dessa prática, em que a questão abs-

trata acerca do direito que foi identificado é resolvida definitivamente

da maneira que a corte julga apropriada. Isso é um argumento para

algo como o sistema existente no Reino Unido, em que a corte pode

expedir uma declaração de que há uma importante questão de direito

em jogo. (WALDRON, 2006, p. 1370)

O que chama a atenção nessa formulação moderada é que

Waldron admite uma certa força para o argumento empírico de Dworkin,

pois a corte poderia desempenhar uma importante “função de alerta” e

atrair a atenção do legislador e do governo em geral para situações de

violação de direitos que não foram devidamente enfrentadas pelos pode-

res constituídos. A eficácia da decisão da corte sobre o conteúdo dos di-

reitos residiria, portanto, na força dos seus argumentos e não propriamen-

te em sua autoridade formal. Se os governos aderem à interpretação ado-

tada pela corte acerca de uma questão político-moral, é muito mais pelo

constrangimento que essa decisão é capaz de engendrar e pela dificuldade

de se desvincular dos ônus argumentativos que a decisão cria do que por

um mecanismo formal de revogação ou anulação da decisão legislativa

pela judicial.

É esse o espírito dos sistemas jurídicos que integram o deno-

minado “Novo Constitucionalismo da Commonwealth Britânica”

(GARDBAUM, 2013).

Thomas Bustamante 90

Resta, porém, um problema: se Dworkin está certo e as cortes

podem, ainda que sob certas condições, atuar como agentes deliberativos

capazes de fomentar um debate público de razões sobre os direitos morais

dos cidadãos e das minorias, que tipo de raciocínio a corte deve seguir

para tanto?

Minha hipótese é de que a corte só conseguirá cumprir esse pa-

pel se realizar exatamente o tipo de interpretação construtiva que Dwor-

kin defende em sua teoria do direito, tentando realizar uma leitura moral

da constituição atenta aos princípios de moralidade política que se locali-

zam na sua base e que proveem a sua justificação política e moral. Deverá

interpretar o direito à luz do ideal político de integridade, com vistas a tor-

ná-lo o melhor que ele pode ser (DWORKIN, 1986; 1996; 2006; 2013).

Não creio ser necessário me estender muito nesse ponto. Afinal,

a teoria de Dworkin dispensa apresentação e será familiar ao leitor desse

trabalho. É uma teoria em que a legitimidade da decisão judicial repousa

em algo próximo ao que Habermas chamou de “força sem coerção dos

melhores argumentos”.

Se a legitimidade das cortes estiver radicada em sua capacidade

de deliberar e na contribuição que ela pode dar para que os próprios cida-

dãos e agentes governamentais possam refletir mais adequadamente sobre

os direitos fundamentais, como aspiram os defensores dos sistemas frá-

geis de judicial review, então inevitavelmente se exigirá uma postura

interpretativa que compreenda o direito na sua melhor luz e que construa

o direito de modo a torná-lo o melhor que ele pode ser, como pretendeu

Dworkin em sua teoria normativa da interpretação do direito.

Essa conclusão, no entanto, embora nos pareça compatível com

as principais críticas que Waldron aduz contra a jurisdição constitucional

no que eu chamei de “rota institucional” (uma rota que advoga mudanças

nos desenhos institucionais para abandonar o princípio da supremacia

judicial, mas ainda é compatível com um sistema frágil de judicial review),

vai de encontro a uma outra rota que Waldron também adota para mitigar o

poder judicial: a rota interpretativa, a qual comentarei na próxima seção.

3 A ROTA INTERPRETATIVA

A rota “interpretativa” poderia também ser designada de “jurí-

dico-teórica”. Ela parte de uma teoria jurídica normativa acerca do direito

e dos critérios estabelecidos para a sua identificação. Trata-se de uma

Teorias Contemporâneas do Direito 91

defesa deliberadamente pautada em argumentos políticos e morais da

denominada “tese das fontes sociais”, que constitui o cerne do pensamen-

to jurídico positivista no âmbito da teoria jurídica contemporânea6.

Como sabemos, o positivismo jurídico pode ser defendido de

pelo menos duas maneiras.

De um lado, ele pode aparecer como uma teoria conceitual ou

metodológica, dentro do âmbito de investigação designado por Hart e

seus defensores contemporâneos como “teoria do direito conceitual”

(conceptual jurisprudence). O propósito de uma teoria positivista, nessa

perspectiva “conceitual” ou “metodológica”, é realizar o que Himma

denomina uma “análise conceitual”, que “pressupõe que os conceitos

centrais do direito são construtos sociais que surgem do entendimento

comum da prática jurídica pelos juristas práticos” (HIMMA, 2013, p.

154). Nesta perspectiva, a teoria do direito se apresenta como uma em-

preitada neutra ou desengajada, cujo objetivo é expor ou descrever o di-

reito tal como ele

,

3 KANT, Immanuel. Groundwork of the metaphysics of morals. Cambridge: CUP,

2012; HEGEL, Elements of the philosophy of right. Cambridge: CUP, 1991;

WEBER, Max. Economy and society: an outline of interpretive sociology.

California: Berkeley, 1978. v. 1, p. 212-298; KELSEN, Hans. Pure theory of law.

Clark: Law book exchange, 2009; HART, H.L.A. The concept of law. 3. ed. Oxford:

OUP, 2013; FOUCAULT, Michel. Security, territory, and population: lectures at

the College de France 1977-1978. London: Palgrave, 2007. p. 115-367; BOURDIEU,

Pierre. The force of law: toward a sociology of the juridical field. The Hastings Law

Journal, v. 38, p. 805-853, 1987.

Teorias Contemporâneas do Direito 11

zação causada pelo secularismo pretende ser substituída por uma reunifi-

cação semântica axiológica com a proposta de uma nova teologia política

de princípios e valores harmônicos4. Contudo, a realidade social parece

resistir a propostas unificadoras e o mundo dos fatos tende a prevalecer,

ampliando o papel do conhecimento prático-concreto-pragmático sobre o

conhecimento teórico-abstrato-dogmático. Em um cenário de emergência

do conhecimento útil e de extrema complexidade5, as teorias contempo-

râneas têm que enfrentar a crise de instabilidade e de desencantamento do

fenômeno jurídico. O direito também busca sua coerência externa e está à

procura de sua alma.

O volume está organizado a partir destes dois grandes eixos.

Iniciamos a trajetória com Thomas Vesting que, em seu artigo, questiona

a relação entre o direito moderno e o saber comum disperso no corpo

social. Segundo o Professor Catedrático de Teoria do Direito da Univer-

sidade de Frankfurt, haveria uma íntima e constitutiva relação entre co-

nhecimento social e direito, em que uma epistemologia social constituída

por redes de convenções sociais daria suporte à normatividade jurídica.

Existiria assim uma estruturação do conhecimento prático social que in-

fluenciaria a base normativa do direito. Este fenômeno teria se consolida-

do através da emergência do direito liberal, quando os juristas passaram a

ter um acesso generalizado e de certa forma uniforme ao conhecimento

social. Assim, foi aprofundada a relação entre o direito e a epistemologia

social, amparada pela ideia de generalidade da lei típica do modelo liberal

predominante após o advento das revoluções francesa e americana. Poste-

riormente, com o advento de uma fase histórica de formação de grupos

sociais – sindicatos, associações, partidos etc. – operou-se uma dinamiza-

ção do conhecimento social que provocou questionamentos a respeito do

mérito desta ideia de generalidade da lei. A sociedade de redes atual alte-

rou novamente a epistemologia social e abriu espaço para uma nova re-

flexão sobre a relação entre o direito e a sociedade.

Marcelo Neves reconstrói o problema da relação entre direito e

incerteza normativa a partir da ligação entre direito e linguagem. Nesse

sentido, o ideário da certeza jurídica teria sido construído dentro do direi-

to pela Escola da Exegese e pela jurisprudência dos conceitos. Neves

propõe um outro viés interpretativo da (in)certeza jurídica trazendo a

4 DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Harvard, 2011. p. 7-11, 15-

19, 123-188 e 417-419; DWORKIN, Ronald. Religion without god. Cambridge:

Harvard, 2013; WALDRON, Jeremy. Religion without god by Ronald Dworkin.

Review, Boston University Law Review, v. 94, p. 1207-12, 2014.

5 MOKYR, Joel. The Enlightened Economy: an Economic History of Britain. 1700-

-1850. New Haven: Yale, 2010. p. 34.

Pedro Fortes / Ricardo Campos / Samuel Barbosa (Coords.) 12

discussão para outro nível de abstração, em que a relação entre alter

(legislador) e ego (juiz) é compreendida como uma relação de dupla con-

tingência. O professor da UNB pretende rechaçar a negação da incerteza

jurídica incorporando-a ao cotidiano da decisão jurídica. Neves correla-

ciona o problema da justiça interna (coesão) ao da justiça externa (ade-

quabilidade social), sendo que o direito teria o desafio de buscar o equilí-

brio como instrumento social com função de ser o catalisador de incerte-

zas normativas.

Fernando Leal também examina a questão da incerteza norma-

tiva não como um problema a ser sanado, mas como um aspecto inesca-

pável do fenômeno jurídico. Seu ensaio aborda a dimensão da incerteza

normativa dentro da teoria da justificação das decisões jurídicas. Para o

professor da FGV DIREITO RIO, a incerteza normativa decorre do fato

da inexorável indeterminação do direito. A partir da perspectiva interna

do sistema de decisão jurídica, existiria um paradoxo da determinação,

insuperável por todas as teorias decisórias normativas. Nesse sentido,

haveria uma necessidade constante de um aperfeiçoamento metodológico

do direito para melhor informar a decisão e justificação jurídica nesses

casos.

Em seu ensaio, Thomas Bustamante oferece um contraponto

aos textos de Marcelo Neves e de Fernando Leal, na defesa da certeza

normativa a partir de uma investigação sobre a questão da coerência in-

terna do direito. Seu foco central é o direito constitucional. Seu texto

examina o problema da incerteza normativa no exercício da jurisdição

constitucional em relação com a teoria democrática do jurista neozelan-

dês Jeremy Waldron. Por um lado, o professor da UFMG esboça a alter-

nativa da “rota institucional”, a partir de uma visão departamentalista da

separação de poderes, em que haveria maior deferência do poder judiciá-

rio aos demais poderes e um esforço de devolução de debate sobre temas

sensíveis para outras instituições e órgãos da sociedade. Por outro lado, o

autor sugere ainda a adoção de uma “rota interpretativa”, a partir da defe-

sa de um positivismo normativo e um apego textual para o exercício da

jurisdição constitucional.

A seu turno, Juliano Maranhão aborda o problema da incerteza

normativa incorporando um novo elemento na discussão – a sociedade

computacional. Inspirado pela literatura alemã e por ideias também se-

guidas por Thomas Vesting, Maranhão se refere a uma relação constituti-

va entre direito e visões de mundo (Weltanschauung), isto é, o fenômeno

jurídico moldado pelo conhecimento social. O professor da USP aprofun-

da a dimensão da decisão judicial frente à crise de visões de mundo, es-

pecialmente com relação à unidade do direito. No âmbito da era informa-

Teorias Contemporâneas do Direito 13

cional, o direito enfrentaria profundos desafios e necessitaria de uma

revisão de seus conceitos basilares, como personalidade jurídica, proprie-

dade e responsabilidade civil, dentre outros. Diante de tais desafios, a

dicotomia tradicional entre casos difíceis e casos não claros talvez não

fosse mais adequada. Outra importante contribuição para o desafio de

elaboração de conceitos jurídicos condizentes com a nova dinâmica social

informacional se dá no exemplo do chamado ‘software livre’ e na nova

semântica dos direitos subjetivos nessa seara.

Outro texto que trabalha com o problema da unidade do direito

e da identidade do sistema normativo jurídico é o ensaio de Gunther

Teubner, que aprofunda o fascinante tema dos fragmentos constitucio-

nais, que tem dominado sua agenda de pesquisa ao longo dos últimos

anos. Teubner tem ampliado a perspectiva sobre estruturas constitucio-

nais, ao incorporar ao constitucionalismo as relações jurídicas fundamen-

tais do direito global – por exemplo, comércio internacional, mercados

financeiros, controle da internet e o universo do futebol6/7. Seu debate

sobre fragmentos constitucionais coloca o problema do direito e sua rela-

ção com as incertezas normativas no cenário transnacional. Por não exis-

tir uma autoridade centralizadora, a sociedade global deve desenvolver

mecanismos inovadores para a proteção de direitos. Neste ensaio original

e inédito em português, Teubner sumariza alguns de seus principais ar-

gumentos e revisita diversos temas a partir da ideia

,

é (abstendo-se de realizar qualquer valoração sobre essa

prática) e direcionar a análise conceitual para atender a necessidades pu-

ramente cognitivas do teórico do direito.

De outro lado, o positivismo pode ser defendido também como

uma teoria normativa ou prescritiva, como o “positivismo normativo”

encampado, entre outros, por Waldron. A diferença entre ambas não está

no critério de determinação do direito válido, mas nas razões pelas quais

se defende o positivismo e na forma como o teórico do direito se relacio-

na com a prática. O positivismo normativo é um positivismo defendido

por razões políticas ou morais. “A pretensão dos positivistas normativos é

a de que os valores associados ao direito – a legalidade e o Estado de

Direito – em um sentido significativamente amplo – podem ser melhor

alcançados se a operação ordinária de tal sistema não exigir que as pes-

soas exerçam juízos morais para descobrir o que o direito é” (WALDRON,

2001, p. 421).

Nesse sentido, o positivismo normativo “é em si mesmo uma te-

se moral: de fato é uma tese moral sobre a formulação de reivindicações

morais em uma área particular da vida social que nós denominamos

direito” (WALDRON, 1999, p. 167).

6 A Tese das Fontes Sociais pode ser considerada o núcleo do positivismo jurídico. Em

sua formulação mais ortodoxa, defendida por Raz, ela não admite sequer a possibili-

dade de a regra de reconhecimento incorporar critérios morais de identificação do di-

reito válido. Essa parece ser a versão da tese das fontes sociais defendida por Waldron

em Law and Disagreement e outros escritos sobre o seu “positivismo normativo”.

Nessa acepção, a tese das fontes sociais diz que “Todo o direito está embasado em

fontes sociais” (“All Law is source-based”) (RAZ, 1994, p. 210).

Thomas Bustamante 92

Embora se possa dizer que o positivismo normativo é uma for-

ma minoritária de positivismo, pode-se encontrar traços importantes do

positivismo normativo na teoria jurídica anglo-saxã, como, por exemplo,

na crítica de Bentham ao Common Law (POSTEMA, 1989), nos escritos

de juventude de Neil MacCormick, em que se defendia argumentos mo-

rais para uma definição “não moralista” do direito (MACCORMICK,

1985), na recente teoria do “direito como planejamento” de Scott Shapiro

(cf. BUSTAMANTE, 2012), e em algumas passagens importantes da

defesa que Frederick Schauer faz de um “modelo de decisão baseado em

regras” no âmbito do direito (SCHAUER, 1991).

Em escrito anterior, classifiquei o positivismo normativo de

Waldron como uma teoria que no ponto de vista metateórico é semelhan-

te ao interpretativismo de Dworkin (BUSTAMANTE, 2015). Embora

Waldron não defenda que o direito deva ser identificado de maneira in-

terpretativa (no sentido particular defendido por Dworkin, que fala em

uma “interpretação construtiva” em que o sentido de uma prática social é

estabelecido de acordo com o seu propósito fundamental ou “point”), a

defesa de um método amoralista de identificação do direito é baseada

também em uma “atitude interpretativa” do teórico do direito, que enten-

de que uma das funções essenciais do direito é promover a coordenação

social segundo diretivas dotadas de autoridade, de modo que o propósito

fundamental do direito estaria frustrado caso se reabrisse a argumentação

jurídica para uma deliberação moral no momento de identificar o conteú-

do de uma regra jurídica.

A formulação teórica do positivismo normativo, em Waldron, é

profundamente direcionada para a prática, e desemboca em duas reco-

mendações concretas para o jurista prático: 1) uma crítica ao “interpreta-

tivismo” de Dworkin no âmbito da identificação do direito em situações

concretas (é dizer, o direito é tido como sendo determinado exclusiva-

mente por “fatos sociais”, de sorte que há de ser identificado apelando-se

a uma fonte social capaz de produzir o direito segundo critérios de vali-

dade estabelecidos em uma regra de reconhecimento)7; e 2) uma defesa

do “textualismo” na interpretação do direito pelos juízes.

7 É interessante notar, como disse acima, que o positivismo normativo pode ser também

entendido como uma teoria interpretativa sobre o direito, que constrói uma concepção

de juridicidade semelhante ao que Dworkin denominou de “convencionalismo” em O

Império do Direito (DWORKIN, 1986). O fato de o positivismo normativo ser uma

teoria “interpretativa” do direito (que propõe uma forma de identificar o direito a par-

tir do que o teórico considera ser o “point” ou propósito do direito), entretanto, não

implica que o método de determinação do direito válido seja, ele também, interpreta-

tivo. O positivismo normativo é uma teoria interpretativa do direito que propõe que a

Teorias Contemporâneas do Direito 93

Para utilizarmos uma categoria de Dworkin, o positivismo nor-

mativo de Waldron seria uma espécie de “convencionalismo” em sentido

forte, ou melhor, um “convencionalismo amoralista” que leva, na prática,

a um formalismo judicial e a um textualismo.

Nesse ponto, Jeremy Waldron possui um argumento interessan-

te contra a busca de intenções concretas do legislador, num contexto par-

lamentar em que há várias opções disponíveis à disposição dos diferentes

grupos que formam a maioria em uma legislatura.

Waldron traz à tona, nesse contexto, o exemplo de H. L. A. Hart

de uma regra que proíbe “veículos no parque”. É perfeitamente possível

imaginar, de acordo com Waldron, “que a nossa imaginária Lei Sobre

Veículos no Parque, considerada como um todo, não reflita os propósitos

ou intenções de nenhum dos legisladores que em conjunto a promulga-

ram” (WALDRON, 1999, p. 125). No exemplo, os legisladores podem

estar divididos quanto (A) à criação de exceção para bicicletas; (B), à

criação de exceção para ambulâncias; e (C) quanto à inclusão na lei de

parques estaduais e parques municipais. É possível imaginar, segundo

Waldron, legisladores divididos em 3 facções, que têm atitudes diferentes

em relação a A, B e C:

Facção 1 Facção 2 Facção 3

A A Não A

B Não B B

Não C C C

Como explica Waldron, “sucessivas votações majoritárias nessas

várias questões iriam produzir a nossa familiar lei [no exemplo Hartia-

no]”, segundo a qual se poderia aceitar A & B & C, “apesar de essa com-

binação não corresponder à preferência de ninguém” (WALDRON, 1999,

p. 127).

No contexto de uma legislatura plural e diversificada, Waldron

vê o apelo à intenção do legislador histórico com um elevado grau de

ceticismo:

Legisladores virão para uma câmara legislativa provindo de diferen-

tes comunidades, com diferentes ideologias, e diferentes perspectivas

validade do direito seja determinada de uma maneira não interpretativa. Não há ne-

nhuma contradição nisso.

Thomas Bustamante 94

sobre o que conta como uma boa razão ou uma consideração válida

em um argumento político. A única coisa que eles têm em comum, na

sua diversidade e na multiplicidade da retórica e dos mútuos mal-

entendidos que contam para um debate político moderno, é o texto da

medida legislativa sob nossa corrente consideração. Esse é constituí-

do pelas convenções da linguagem oficial compartilhada como o úni-

co marco, o único ponto de referência ou coordenação, em um mar de

possíveis mal-entendidos. (WALDRON, 1999, p. 145)

Fica claro, portanto, que o positivismo normativo de Waldron

leva a um textualismo e a uma leitura formalista (ou, pelo menos, amora-

lista) das regras jurídicas estabelecidas pelo legislador. É, por conseguin-

te, uma tentativa de conter a criatividade judicial e de evitar que os juízes

façam deliberações morais ao interpretar o direito. Eles devem atuar co-

mo fiéis executores das determinações legislativas, de modo que a reali-

zação de juízos morais sobre o conteúdo de nossos direitos

,

seja feita ex-

clusivamente pelo legislador.

Waldron encampa, aqui, uma concepção rígida de separação

dos poderes, vendo com profunda desconfiança as valorações morais

realizadas pelos juízes no contexto da aplicação do direito.

4 CONCLUSÕES

À guisa de conclusão, poderíamos indagar: existe coerência en-

tre a rota institucional e a rota interpretativa para combater a supremacia

judicial na interpretação da constituição e do direito em geral?

O ponto central da análise realizada nesse breve comentário foi

tentar estabelecer as bases para uma resposta negativa a essa indagação.

Caso o crítico à supremacia judicial opte pela rota institucional, ele acata-

rá vários argumentos de Waldron, mas terminará defendendo ou a aboli-

ção completa das cortes constitucionais – que é uma alternativa radical

que praticamente nenhum sistema jurídico contemporâneo tem sequer

aventado – ou um modelo de jurisdição constitucional frágil onde as cor-

tes exercem a função de alertar ao povo e aos demais poderes sobre pos-

síveis violações de direitos fundamentais, aumentando o grau de delibe-

ração pública sobre direitos. A atuação da corte só tem valor, nessa rota,

por sua capacidade argumentativa e por sua atuação na esfera pública

como um parceiro dos legisladores na construção de um diálogo sobre a

melhor interpretação dos princípios abstratos previstos na constituição.

Teorias Contemporâneas do Direito 95

Se essa via for adotada, cortes e legisladores se engajam con-

juntamente em uma espécie de “interpretação colaborativa” dos direitos

fundamentais (DWORKIN, 2013, p. 134-139), que foi defendida e radi-

calizada recentemente por Dimitrios Kyritsis em um modelo normativo

onde cortes e legisladores assumem a interpretação da constituição co-

mo uma tarefa compartilhada e moralmente responsável (KYRITSIS,

2015).

No entanto, essa estratégia, que me parece bastante plausível, só

tem alguma chance de atingir os seus propósitos se a rota interpretativa

defendida por Waldron para limitar o poder judicial for rejeitada. Um juiz

formalista e atrelado ao texto da lei, como quer Waldron em seu positi-

vismo normativo, é incapaz de cumprir as tarefas que lhe restam se a rota

institucional for seguida.

Em poucas palavras, podemos concluir com a seguinte tese: a

crítica à supremacia judicial e a defesa de um modelo de jurisdição cons-

titucional frágil só se justificam caso se assuma uma leitura moral da

constituição tal como a defendida por Dworkin em seu interpretativismo.

Uma corte frágil, carente de autoridade para fixar definitivamente o con-

teúdo do direito, só tem alguma utilidade se ela adotar uma metodologia

interpretativa capaz de levar os governos, os cidadãos e a sociedade a

dialogarem com a corte assumindo os ônus argumentativos necessários

para interpretar o direito em sua melhor luz. A rota institucional – que

propõe mudanças no modelo de controle de constitucionalidade para fo-

mentar o debate moral no legislativo e nos demais órgãos governamentais

em uma democracia – só faz sentido caso se suponha que toda a socieda-

de detém a capacidade de adotar a atitude interpretativa defendida por

Dworkin. Só faz sentido caso se suponha algo como a “interpretação

protestante” (generalizada para toda a sociedade) defendida por Dworkin

em O Império do Direito (DWORKIN, 1986).

A legitimidade de uma determinada interpretação, caso se adote

o modelo de interpretação protestante sugerido por Dworkin, advém do

reconhecimento público de sua integridade e justiça. E, naturalmente, a

corte só pode contribuir para esse reconhecimento se ela também adotar

uma interpretação construtiva do direito e dos princípios de moralidade

política incrustados na Constituição.

A rota institucional, que nos parece plausível, é incompatível

com a rota interpretativa que defende o positivismo normativo e o textua-

lismo na interpretação judicial.

Thomas Bustamante 96

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Teorias Contemporâneas do Direito 97

RECONFIGURAÇÃO CONCEITUAL?

O DIREITO DIGITAL COMO

METÁFORA DE SI MESMO

Juliano Maranhão1

Sumário: 1. O Direito Digital em Meio à Crise de uma Visão de Mundo. 2. O

Núcleo e a Configuração dos Sistemas Normativos. 3. Conceitos Jurídicos:

Definições, Inferências e Implicaturas. 4. Conceitos Jurídicos e Metáforas.

5. Metáforas e Desafios ao Direito Postos pelo Ambiente Digital. 6. Conclusão:

uma Hipótese. 7. Referências.

1 O DIREITO DIGITAL EM MEIO À CRISE DE UMA

VISÃO DE MUNDO

As últimas décadas do Séc. XX foram agitadas por ricas discus-

sões em teoria do direito sobre a adequação ou quebra de determinada

“visão de mundo”:

i) o direito é um dado identificado com referência a uma prá-

tica social (a convergência em relação a uma fonte conven-

cionada), que permite derivar um conjunto de regras gerais,

resultado

,

de escolhas prévias de autoridades reconhecidas,

do qual se extrai um sistema de soluções para qualquer tipo

de conflito prático;

1 Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Profes-

sor Visitante da Goethe-Universitat Frankfurt am Main. Coordenador do Grupo de Es-

tudos de Inteligência Artificial e Direito- GELIAD/USP e de pesquisa jurídica do

Centro de Competência em Software Livre- CCSL/USP. O autor agradece a CAPES e

a Fundação Humboldt pelo suporte para o projeto de pesquisa "Logical tools for mo-

delling conceptual reconstruction and argumentation in Cyberlaw" (Processo n.

99999.000073/2016-04), no âmbito da qual o presente artigo foi produzido.

Juliano Maranhão 98

ii) aos juízes é conferida autoridade para criar normas indivi-

duais que deverão (competência delimitada pelo conteúdo

das normas de conduta hierarquicamente superiores) aplicar

essas soluções para os casos concretos que se enquadrarem

naqueles tipos de conflitos previamente solucionados. Em

caso de dúvida (indeterminação, lacuna ou inconsistência)

ou necessidade de adaptação, há suficiente discricionarie-

dade para que o juiz crie a solução particular.

Esse modelo foi e continua questionado em dois flancos: o pres-

suposto de unidade das regras e o papel cognitivo da atividade judicial.

No primeiro flanco, começa-se a reconhecer que a identificação

de regras vinculantes para determinadas práticas não tem exclusivamente

fonte estatal, em função de crescente regulação privada, dada, por exem-

plo, por associações e autorregulação por companhias, ou externa, por

exemplo, regras incorporadas a partir de organizações internacionais pú-

blicas, bem como padrões não escritos de comportamento e conceitos

derivados de práticas arraigadas, políticas e valores prevalecentes em

determinados campos, que criam regras ou determinam sentidos2.

Essa transformação mexe diretamente com a forma pela qual o

direito é interpretado e aplicado em frentes importantes: (i) o direito

internacional ganha expressão nas ordens jurídicas internas, resgatando a

noção de um jus gentium em torno de princípios jurídicos ou práticas

comerciais universalmente reconhecidos (responsabilidade dos Estados

em questões econômicas ou de práticas comerciais “justas”, o julgamen-

to de crimes contra a humanidade), o que trouxe uma revalorização dos

direitos humanos, com toda sua carga moral; (ii) o direito constitucional

conferindo grande amplitude ao controle de constitucionalidade, concen-

trado ou difuso, que passa a ser justificativa para interpretações de lege

ferenda, ou aplicações imediatas dos textos constitucionais aos casos,

com base em interpretações de enunciados de direitos fundamentais, di-

reitos sociais e interesses coletivos, além de programas políticos neles

incorporados; (iii) a relação público vs privado torna-se menos demarca-

da quando o setor privado retoma terreno e assume funções típicas do

Estado, que passa a ter função reguladora e indutora de comportamentos

para a proteção do interesse público, de modo que o judiciário sai de um

papel negativo de rechaçar intervenções estatais abusivas no domínio

privado para avaliar a “proporcionalidade” na ponderação, pelas autori-

dades, de interesses individuais, setoriais e coletivos (concorrência, con-

sumidor, meio ambiente, cultura etc.).

2 VESTING, T. Rechtstheorie. C. H. Beck, 2014.

Teorias Contemporâneas do Direito 99

Com isso, a ênfase deixa de estar no Direito como um dado e

passa a estar na dinâmica de produção normativa, interpretação e recons-

trução conceitual a partir de casos particulares e de campos específicos de

aplicação, sensível a valores próprios3. E aqui entra a transformação no

segundo flanco. A partir do final do século passado, o judiciário passou

cada vez mais a enfrentar questões típicas de moralidade e políticas pú-

blicas, vendo-se imbuído do dever de garantir justiça substantiva e não

apenas procedimental (declaração do direito estabelecido em decisões

políticas prévias), o que fica refletido em decisões baseadas na pondera-

ção de valores, direitos humanos (individuais, sociais e coletivos), ou em

análises consequencialistas, justificadas por reconstruções da ordem jurí-

dica. Fica em xeque a imagem piramidal com a qual o ordenamento era

associada, colocando-se no lugar a imagem do ordenamento como uma

rede de sistemas e subsistemas de normas jurídicas que integram regras

de diferentes fontes cuja autoridade é reconhecida, a partir do qual o ju-

rista deve construir soluções4.

Nesse quadro, fica difícil explicar o direito abstraindo-se da in-

terpretação e da valoração (não necessariamente moral) de seu conteúdo,

das condições de validade e justificação das decisões, o que pode ser feito

integrando-se a teoria da validade à interpretação. Sem questionar a

possibilidade de explicar essas decisões com base na discricionariedade,

o fato é que o grau de discricionariedade judicial passou a ser o grande

alvo de preocupação, de modo que a pergunta sobre como os juízes

decidem (quais são seus critérios na reconstrução do ordenamento) tor-

nou-se crítica5.

Tal busca por explicação e fundamentação da atividade inter-

pretativa é o sintoma característico da percepção de incerteza na identifi-

cação do direito. Quero discutir aqui esse tema a partir do desafio particu-

lar que o ambiente digital tem trazido a essa visão de mundo.

A regulação e aplicação do direito no âmbito da tecnologia da

informação e particularmente da internet é um exemplar típico dessas

transformações: está sujeita a corregulação6, com regras impostas pelo

Estado, tem a arquitetura e funcionamento determinado por regras decor-

3 MULLER, F. Strukturierende Rechtslehre. Dunker & Humboldt, 1994.

4 VESTING, T. Rechtstheorie, C. H. Beck, 2014.

5 Sobre essa intrincada discussão presente na teoria do direito contemporânea, discorro

com mais detalhe em MARANHÃO, J.S.A. Positivismo Jurídico Lógico-Inclusivo.

São Paulo: Marcial Pons (em especial o Cap. 2).

6 MARSDEN, C. T. Internet Co-regulation: European Law, Regulatory Governance

and Legitimacy in Cyberspace. Cambridge, 2011.

Juliano Maranhão 100

rentes da tecnologia e códigos computacionais adotados7, além de estar

sujeita a autoadministração por entidades reguladoras; traz complicadas

questões de soberania na aplicação da lei diante de comunicações envol-

vendo cidadãos de diferentes países intermediadas por companhias trans-

nacionais; as práticas comerciais são pautadas por tipos de contratos de-

senhados conforme o direito vigente em países de fronteira tecnológica

que acabam por se impor ou ao menos se disseminar em outros países

(e.g a licença GPL para software em regime livre), ainda que sua compa-

tibilidade com os respectivos ordenamentos seja duvidosa.

Esses aspectos já colocam os conflitos nascentes nesse ambiente

dentro de um campo de incerteza, dada a dificuldade de identificação das

próprias regras aplicáveis (dotadas de autoridade). Mas é na atividade de

interpretação que os conflitos no ciberespaço desafiam o direito de forma

mais aguda. Esse desafio está presente em três dimensões inter-relacio-

nadas: (i) emprego de metáforas: argumentos construídos a partir de me-

táforas do mundo físico para o digital são empregados como ferramentas

heurísticas para classificar novas tecnologias em categorias já conhecidas

presente na legislação ou em precedentes; (ii) sopesamento de valores:

dificuldades de categorização levam a argumentos baseados em políticas

e valores potencialmente conflitantes ligados à internet (e.g. liberdade de

expressão e privacidade); (iii) mudanças de estrutura conceitual: novas

formas de produção, criação e relações econômicas, como “creative

commons” e “sharing economy”, ou novas tecnologias, como agentes

eletrônicos, parecem

,

exigir revisão de conceitos jurídicos fundamentais

como personalidade jurídica, propriedade e responsabilidade civil.

Diante dessas dificuldades interpretativas, os argumentos se po-

larizam em duas concepções antagônicas. A primeira, excepcionalista,

tende a ver a internet como um campo específico, que demanda novas

soluções, construindo-se um direito próprio para o universo digital. A

segunda, não excepcionalista, vê apenas o mesmo direito aplicado a um

novo objeto ou a relações jurídicas que meramente se travam por um

novo meio de comunicação.

Uma tentativa de lidar com esse impasse pode partir de esforço

de compreensão do tipo e profundidade da incerteza gerada por esses

casos desafiadores trazidos pelo ambiente digital. Mas uma caracteriza-

ção bem-sucedida da incerteza está ligada à compreensão daquilo que

entendemos como certo.

7 LESSIG, L. Code and other laws of Cyberspace, v. 2.0. Lawrence Lessig, cc atribu-

tion-share alike, 2006.

Teorias Contemporâneas do Direito 101

2 O NÚCLEO E A CONFIGURAÇÃO DOS SISTEMAS

NORMATIVOS

A discussão sobre o que os juristas entendem por casos fáceis

ou claros é uma incursão sobre teoria da interpretação. Todavia, nas últi-

mas décadas ocupou o cenário da teoria do direito no que concerne à

teoria da validade. Isso se deve principalmente ao ataque de Dworkin à

tese positivista da convenção social ou tese das fontes sociais, segundo a

qual a identificação do direito parte de uma convenção ou convergência

na prática social sobre quais são as fontes dotadas de autoridade para a

criação de regras de comportamento. Por meio de seus “hard cases” –

casos em que a regra aplicável tem um conteúdo claro, porém há fortes

razões morais ou políticas para “derrotar” sua aplicação, questionou a

possibilidade de convergência em torno de critérios moralmente neutros

sobre quais são as fontes de direito válido.

A partir desse ataque, tornou-se um desideratum no âmbito da

teoria do direito precisar o sentido de objetividade que permite falar em

casos claros e casos não claros. Não há efetivamente consenso sobre o

que isso significa e há mesmo indeterminação terminológica, com men-

ções a casos “claros”, “fáceis”, “objetivos” (às vezes tomados por sinô-

nimos, às vezes não), em oposição a casos de “penumbra”, “difíceis”,

“não claros”.

O primeiro elemento que se tem à disposição são os textos de-

correntes de promulgações de normas. Mas não é possível reduzir o orde-

namento jurídico a sequências de símbolos: há referências dos textos uns

aos outros (e.g. atribuições de competência especificando critérios de

identificação de autoridades de hierarquia inferior) e a compreensão des-

ses é necessária até mesmo para se identificar objetivamente as fontes de

regras válidas. Tem-se, portanto, que lidar com o sentido dos textos.

O problema em lidar com o sentido está na indeterminação ine-

rente à linguagem natural. Daí por que Hart distingue entre casos claros e

casos de penumbra. A base da distinção é a interpretação que Waismann

dá à teoria do significado de Wittgenstein no texto “Verifiability”8. Aqui

não é o lugar para entrar na complexidade dessa teoria, basta destacar a

ideia de que conhecer o sentido de um termo da linguagem significa do-

minar uma habilidade em aplicá-lo, o que pressupõe, no mínimo, a possi-

bilidade de identificação e aplicação desse termo em algumas instâncias

8 WAISMANN, F. Verifiability. Proceedings of the Aristotelean Society, v. 19. [S.I.:

s.n], 1945.

Juliano Maranhão 102

de forma não problemática. Ou seja, conhecer o sentido significa conhe-

cer casos-padrão ou típicos de aplicação. Por isso, é uma verdade concei-

tual haver um núcleo de instâncias do termo reconhecidas pela comuni-

dade linguística, sem o que não haveria um uso compartilhado deste e,

portanto, não haveria sentido.

Essa tese deixa em aberto, porém, o que se deve entender por

identificação não problemática de instâncias de aplicação de um termo

ou, para o que interessa aqui, de uma norma jurídica.

Marmor descreve tais situações como aquelas nas quais o senti-

do dos termos da norma são claros e dispensam a interpretação para sua

aplicação9. A interpretação só é chamada a atuar quando a formulação da

regra criar dúvida. Interpretar significa, para Marmor, substituir o texto

da norma por uma formulação mais precisa, levando em conta uma com-

preensão contrafática da intenção do legislador. Para Marmor, portanto,

caso claro também tem a ver com a clareza da formulação normativa, ou

seja, é identificado quando a norma não precisa ser interpretada para a

sua aplicação. Como procurei mostrar em outra oportunidade, porém, tal

concepção encontra dificuldades uma vez que pode-se identificar casos

certamente considerados “claros” ou “fáceis” mas que exigem reformula-

ção do enunciado normativo para que o sentido aceito identifique-se com

sua expressão10.

Parece inadequado, portanto, definir casos claros como aqueles

nos quais a norma não precisa ser interpretada. Como o próprio termo já

induz essa ideia, é melhor até mesmo basear a identificação da objetivi-

dade em outra distinção terminológica. Não se trata de saber se a norma é

clara ou não. “Caso claro” ou “caso fácil” diz respeito a uma propriedade

do caso com relação à norma, ou melhor, da objetividade da instanciação

da norma ao caso. Nessa linha, que toma a instanciação como noção cen-

tral, MacCormick defende a existência de decisões jurídicas suficiente-

mente justificadas em forma puramente dedutiva11. Atria12 interpreta essa

sugestão em contraposição à tese de Alexy13, da perspectiva de sua teoria

9 MARMOR, Andrei. Interpretation and Legal Theory. 2. ed., rev. Oregon: Hart

Publishing, 2005. p. 96 e ss.

10 Ver MARANHÃO, J. Positivismo Jurídico Lógico-Inclusivo. São Paulo: Marcial

Pons, 2013 (item 3.5).

11 MACCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory. Oxford: Clarendon

Press, reimpressão de 1994 com novo prefácio.

12 ATRIA, Fernando. Del Derecho y el Razonamiento Jurídico. Doxa, 22, 1999.

13 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica – A teoria do discurso racio-

nal como teoria da justificação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. Revisão:

Claudia Toledo. São Paulo: Landy, 2005, parte III, item 1-2.

Teorias Contemporâneas do Direito 103

da argumentação, segundo a qual toda fundamentação de decisão, para

ser considerada suficientemente justificada, deve necessariamente conter

uma justificação interna (dedução da conclusão a partir das premissas) e

uma externa (argumentação em defesa das premissas com base em legali-

dade, moralidade, consequências, intenção do legislador etc.). Assim,

casos fáceis seriam aqueles para os quais a justificação externa das pre-

missas normativas seria desnecessária14.

Também essa conceituação enfrenta dificuldades, como mostrei

em outra oportunidade, identificando-se casos certamente considerados

como claros, mas que envolvem justificação, ao menos implícita, das pre-

missas normativas. Ou seja, o significado tomado como claro ou fácil pode

ser já o resultado determinado de uma possível disputa interpretativa e ar-

gumentativa (justificação externa, na terminologia de Alexy15), que envolve

controvérsia sobre as premissas de uma instanciação, com atribuições de

sentido e justificações concorrentes. Ou seja, da mesma forma que o “claro”

pode não ser uma qualidade semântica da formulação normativa, o “fácil”

para uma instanciação não significa que essa seja “puramente dedutiva”.

Como existem casos fáceis envolvendo reformulação de con-

teúdo e justificação externa das premissas, é preciso buscar uma perspec-

tiva mais geral. O caso é fácil naquelas instanciações que são geralmente

consensadas pela comunidade jurídica. Na verdade, essa concepção se

aproxima de Hart16, que distingue o sentido

,

leigo, dado pelo consenso no

uso ordinário dos termos empregados na regra, daquele sentido técnico-

-jurídico dado pelo emprego de técnicas de interpretação. Este último já

envolve o controle do significado por meio de convenções especiais ou

14 Obviamente trata-se de uma leitura feita por Atria da posição de MACCORMICK em

Legal Reasoning and Legal Theory. Já na reedição de 1994 daquele livro, como o

próprio Atria destaca, MacCormick marcou no prefácio uma alteração em sua com-

preensão do papel da dedução no raciocínio jurídico: “That shows why deductive rea-

soning from rules cannot be a self-sufficient, self-supporting, mode of legal justifica-

tion. It is always encapsuled in a web of anterior and ulterior reasoning from princi-

ples and values, even although a purely pragmatic view would reveal many situations

and cases in which no one thinks it worth the trouble to go beyond the rules for prac-

tical purposes” (MACCORMICK, 1994, p. xiii).

15 ALEXY (2005, p. 226).

16 HART (1983, p. 106), “Os casos claros são aqueles nos quais existe consenso geral

de que se inserem no escopo da regra e é tentador atribuir esse consenso simplesmen-

te ao fato de que necessariamente há tais acordos no uso de convenções compartilha-

das da linguagem. Mas isso seria uma simplificação demasiada, pois ela não abriria

espaço para convenções especiais do uso jurídico das palavras, que podem divergir

do uso comum, ou para a forma pela qual o significado das palavras pode ser clara-

mente controlado com referência ao propósito de um ato legislativo, que pode ele

mesmo ser afirmado explicitamente ou geralmente acordado” (Tradução livre).

Juliano Maranhão 104

do propósito claramente atribuído ao ato de promulgação ou decisão.

Aquele sentido leigo tem a ver com o material que é dado ao jurista. Este

sentido técnico já pode ser o resultado da atuação da interpretação, que

torna o caso claro. Naquilo que é considerado “claro” ou “fácil”, sim-

plesmente não se cogita de argumento plausível contra a instanciação,

uma vez que essa faz parte de um núcleo já arraigado na prática jurídica.

Desafiar esse conteúdo significaria desafiar a própria prática.

Outro aspecto importante: Hart acena para o caso como elemen-

to determinante da facilidade ou dificuldade da instanciação da norma e

não o contrário17. Não são as regras que determinam as suas instâncias de

aplicação, mas é a partir do caso que se identificam, por interpretação, as

regras a aplicar e qual seria o conteúdo claramente aplicável a esse caso.

A pergunta abstrata sobre o conjunto de todas as normas jurídicas válidas

não faz muito sentido prático para o operador do direito. A pergunta so-

bre o conteúdo do ordenamento, na voz dos operadores, está sempre liga-

da à resolução de um problema, atual ou hipotético. Ou seja, a questão é

saber o que isso que nós consideramos “o ordenamento” diz sobre o sta-

tus deôntico (permitido, proibido, obrigatório) dessa ação nessas circuns-

tâncias com a qual me confronto.

Essa reconstrução do sistema normativo direcionado ao pro-

blema apoia-se justamente naquele conjunto de casos ou situações indis-

putáveis que forma o núcleo daquilo que entendemos por direito ou por

alguma área específica do direito. A reconstrução dos sistemas normati-

vos, a partir do material jurídico vinculante, deve ser capaz de explicar,

ou ser coerente, com esse conteúdo básico socialmente convergente. En-

tram em jogo não só o sentido das regras postas cuja autoridade seja re-

conhecida, mas também os valores subjacentes que justificam aquelas

regras com aqueles sentidos atribuídos em cada reconstrução possível. A

perspectiva é congênere à imagem do ordenamento como uma rede de

subsistemas de soluções normativas. Mas note-se que ela admite também

mais de um conjunto de subsistemas possíveis (de normas e justificações

valorativas) capazes de explicar aquele núcleo convergente, o que coloca

esta concepção de sistema normativo e ordenamento em um modelo ex-

plicativo coerentista, em que o conteúdo das regras (e suas justificações

morais) é inferido a como a melhor explicação possível para material

jurídico pré-interpretativo e para o conjunto convergente de instancia-

ções, local, não holístico, ou seja, as explicações e sistemas de soluções

17 “é muito difícil oferecer uma abordagem exaustiva do que faz um “caso claro” ser

claro ou faz uma regra geral ser unicamente aplicável a um caso particular. Regras

não podem pretender instanciações próprias e situações de fato não aguardam o juiz

emblemadas com a regra a elas aplicável” HART, op.cit., p. 106, tradução livre.

Teorias Contemporâneas do Direito 105

são reconstruídas a partir de um problema ou conflito dado e da parcela

do ordenamento relevante (não para todas as ações e conflitos possíveis

ou para todo o ordenamento) e subdeterminado (admite-se sistemas nor-

mativos concorrentes como juridicamente possíveis)18.

Vamos chamar esse conteúdo convergente e nuclear de “casos

determinados” de identificação do direito a partir do ordenamento (mate-

rial jurídico sujeito a interpretação). Os casos em que há subdeterminação

(sistemas concorrentes admissíveis instanciam soluções opostas) são

aqueles onde há incoerência (que pode ser entre normas conflitantes, ou

entre a solução apontada pela regra e a solução apontada por sua justifi-

cação de fundo) ou indeterminação (que pode decorrer de lacunas norma-

tivas, exigindo integração, ou de penumbra ou vagueza do termo norma-

tivo, o que leva a escolhas entre atribuições de sentido concorrentes)19. A

solução nos casos de subdeterminação é encontrada a partir de reconstru-

ções de sentido das regras (e suas justificações morais/políticas) coerentes

com os casos determinados.

3 CONCEITOS JURÍDICOS: DEFINIÇÕES, INFERÊNCIAS

E IMPLICATURAS

O conceito de “caso fácil” ou “determinado” aqui adotado, de

inspiração hartiana, alinha-se a uma concepção de sentido como habili-

dade de uso pelos participantes de uma comunidade linguística e não com

18 Para maior detalhamento desta concepção de sistema normativo e ordenamento e sua

distinção em relação ao outras, em particular com o modelo de direito como integri-

dade de Dworkin, ver MARANHÃO, J.S.A. Positivismo Jurídico Lógico-Inclusivo.

São Paulo: Marcial Pons, 2013.

19 Normalmente, quando se destacam os chamados “problemas de interpretação”, são os

quatro casos nas pontas do diagrama (penumbra, lacuna, inconsistência e incoerência)

que pautam as classificações. É usual, desde Savigny, (SAVIGNY, Friedrich Karl

von. Sistema del Diritto Romano attuale. Trad. Vittorio Scialoja. Torino: Unione

Tipografico, 1886. p. 229) dividi-los entre problemas das leis consideradas singular-

mente e das leis consideradas em sua relação com o sistema jurídico, de forma que

penumbra e casos difíceis passam a pertencer à primeira classe, enquanto lacunas e

conflitos normativos passam a ser problemas de sistematização. Savigny denominava

“leis defeituosas” os problemas ligados a leis singulares, distinguindo entre leis inde-

terminadas e leis inexatas. As indeterminadas são aquelas que não indicam perfeita-

mente um pensamento, i.e. os casos de ambiguidade e vagueza. As inexatas são leis

que manifestam um pensamento claro mas diverso do seu “pensamento verdadeiro”

(que é a hipótese de conflito entre a regra e sua ratio). A perspectiva adotada aqui vê a

determinação e subdeterminação não nas regras, mas nos casos.

Juliano Maranhão 106

determinada descrição definida pelo elenco de condições necessárias e

suficientes para emprego do termo ou para predicação verdadeira de “fá-

cil” para determinado caso jurídico. A existência desse conjunto conver-

gente de casos determinados, aderentes a um conjunto de soluções e con-

ceitos jurídicos, é tomado como condição de possibilidade de sentido

,

para

o termo “direito”20. Pressupõe-se que se não houver convergência mínima

em torno de um conteúdo para uma prática social, que seja reconhecida

reflexivamente pelos praticantes como tal, não se pode admiti-la como

prática social.

A referência, assim, de “direito” (em uma comunidade qual-

quer) identifica-se com esse núcleo convergente de sentido (os casos

fáceis/determinados) e os possíveis conjuntos de soluções normativas,

conceitos e valores que sejam com ele coerentes, a partir de fontes reco-

nhecidas de autoridade. O significado de “casos fáceis” poderia ser toma-

do simplesmente como aquele conjunto de instanciações de soluções,

conceitos jurídicos e valores compartilhados em cada comunidade jurídi-

ca, admitindo-se para esse termo apenas uma denotação (referência) sem

conotação (sentido)21. Assume-se, porém, na linha de Searle22, que a con-

vergência no uso decorra de um consenso de ação que envolva alguma

cognição, ainda que não possa ser traduzida por uma descrição singular

identificadora. Aquele que compreende e identifica de modo competente

um caso fácil em uma comunidade jurídica, normalmente o associa a um

conjunto de fatores, ainda que vagos, correspondente a alguma porção de

propriedades (cluster) que acredita justificar seu emprego23. Mas esse

cluster não precisa ser estável ou especificável informativamente de mo-

do unívoco.

Por exemplo, pode-se afirmar com segurança que uma viagem

de lua de mel não é uma razão jurídica para justificar a realização de um

aborto segundo o direito brasileiro. A verdade dessa proposição pode

20 Ver MARMOR, Interpretation and Legal Theory. Oxford, 2005. Esse pressuposto

convencionalista é o alvo central do ataque de Dworkin ao positivismo analítico

(DWORKIN, Ronald. M. Law’s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1997).

21 No sentido que Frege atribui a esses termos. (FREGE, G. Uber Sinn und Bedeutung,

Zieitschrift fur Philos. Und Philos. Kritik, 1982. p. 100.

22 Há uma rica disputa em torno do significado de nomes próprios e conceitos na filosofia

analítica da linguagem que não cabe entrar aqui. Para uma introdução, ver MILLER,

Alexander. Filosofia da Linguagem. São Paulo: Paulus, 2010.

23 Raz defende uma concepção semelhante ao falar em um conceito compartilhado de

direito no qual os participantes convergem sem que dele tenham um domínio completo e

que envolvem algumas características gerais. Ver RAZ, J. Pode Haver uma Teoria do

Direito. In: RAZ, J.; ALEXY, R.; BULYGIN, E. Uma discussão sobre a Teoria do

Direito. 2013, p. 69-101.

Teorias Contemporâneas do Direito 107

estar associada a alguns fatores como a existência de uma regra no código

penal, admitido como vinculante e válido no país, que proíbe o aborto e

não prevê essa exceção, o conceito compartilhado de “aborto” com suas

instâncias típicas de ação, a crença na literalidade da proibição; a ausên-

cia de justificativa moral plausível endossada pela legislação que legitime

o aborto nessa hipótese etc. de modo que não cabe argumento para desa-

fiar as premissas normativas aceitas ou sua subsunção.

Como não há extensão demarcada por uma descrição definida

para esse núcleo – mas apenas um cluster de crenças dos praticantes so-

bre as propriedades que justificam o emprego do conceito de direito e

sobre o qual se pressupõe um mínimo de sobreposição e convergência –

admite-se uma variação de grau, com o reconhecimento de representantes

prototípicos24, que podem reunir mais elementos convergentes, e outros

que, embora reconhecidos, não têm o mesmo grau de convergência.

O mesmo vale para os conceitos jurídicos que fazem parte

daquele núcleo compartilhado envolvido nessa habilidade de identifica-

ção dos casos fáceis que compõem o direito em determinada comunida-

de. Com relação a esses, há duas concepções contrapostas na tradição

jurídica.

A primeira, a concepção ontológica, crê que conceitos jurídicos

têm significado independente e prévio à sua estipulação em norma jurídica:

seu significado contribui para a determinação e composição do significa-

do da norma. Os conceitos jurídicos, nessa linha, referem-se a objetos no

mundo jurídico que podem ser descritos, de modo que cada conceito tem

um significado e propriedades que lhes são inerentes, merecendo defini-

ção e categorização capaz de distingui-las e relacioná-las com os demais

conceitos. Essa perspectiva incorpora realismo compatível com a visão

jusnaturalista, em que o conteúdo dos conceitos é deduzido de determina-

das máximas de moralidade, mas teve seu representante mais típico na

dogmática alemã do século XIX (que Jhering batizou de “jurisprudência

24 A teoria prototípica do significado tem sua origem na filosofia da linguagem ordinária

segundo Wittgenstein. Ver Lakoff (LAKOFF, George. Women, Fire, and Dangerous

Things – What Categories Reveal about the mind. Chicago e Londres: The Univer-

sity of Chicago Press, 1990, part. I, item 3), que discute a concepção de Wittgenstein

para fundamentar o discurso e a formação de conceitos por meio de metáforas. Ver

também a coletânea de ensaios (MARGOLIS, Eric; LAURENCE, Stephen (Eds.).

Concepts – Core readings. Cambridge-London: The MIT Press, 1999). Uma leitura

de Hart como adepto de uma concepção prototípica de sentido pode ser encontrada em

ENDICOTT, Timothy A. O. Herbert Hart and the Semantic Sting. In: COLEMAN,

Jules (Ed.). Hart’s Postscript: Essays on the Postscript to the Concept of Law. Oxford:

Oxford University Press, 2005 (Reimpressão).

Juliano Maranhão 108

dos conceitos”)25. Boa parte dos manuais de direito que hoje conhecemos

incorporam essa tradição ao categorizar o direito em árvores de dicoto-

mias, por exemplo, como fatos vs fatos jurídicos, fatos jurídicos vs atos

jurídicos, atos jurídicos não negociais vs negociais, contratos bilaterais

vs multilaterais, pessoais ou reais, com diferentes categorias contratuais

como compra e venda, empréstimo, locação, comodato etc. comparados

conforme suas semelhanças e diferenças.

Essa sistematização dogmática no séc. XIX isolou o direito do

domínio das deliberações políticas ao conferir-lhe um conteúdo dado por

conceitos jurídicos historicamente determinados. Em-bora em sua origem

essa conceptualização objetivasse apurar o desenvolvimento histórico do

conceito por determinada cultura jurídica, em oposi-ção à visão jusnatu-

ralista de conceitos prefixados por uma moralidade universal, o histori-

cismo, tanto no direito continental quanto no common law, passou a ser

visto como restrito à definição, concatenação e classificação de conceitos

a serem subsumidos aos conflitos, o que seria expressão de postura neu-

tra, científica e apolítica. Exatamente por isso foi atacado no final do séc.

XIX e início do séc. XX como formalista e conservador, impregnado de

uma moralidade política liberal (sacralização da propriedade, responsabi-

lização de danos pela culpa subjetiva, validade do contrato fundada na

vontade das partes), insensível às transformações sociais (na época,

vivenciava-se uma série de novos conflitos decorrentes da segunda revo-

lução industrial) e aos objetivos e razões políticas de cada instituto ou

conceito.

A segunda concepção, inferencial, que passa a dominar a cena

no século XX, liga-se ao positivismo analítico e reduz o conceito a suas

condições e consequências determinadas por regras jurídicas26. Ou seja,

são as regras e as inferências normativas por elas previstas que dão senti-

do ao conceito jurídico e não o contrário. Os conceitos ganham sentido na

medida em que são inseridos nos textos normativos, que, por sua vez,

funcionam como ligações inferenciais entre condições e consequências.

Se as regras mudam, por decisões políticas, o significado do conceito

jurídico também muda. E entender um conceito jurídico, como, por

exemplo, o direito de propriedade, nada mais seria do que descrever as

,

condições de instanciação de regras (as condições alternativas de aquisi-

25 JHERING, R. Sherz und Ernst in der Jurisprudenz: eine Weinachtsgabe für das

juristische Publikum. Leipzig, 1884.

26 Para uma exposição mais detalhada dessa virada na teoria do direito ver MARA-

NHÃO, J.S.A. “Por que teorizar sobre teoria do direito”?, estudo preliminar à edição

brasileira de RAZ, J.; ALEXY, R.; BULYGIN, E. Uma discussão sobre a teoria do

direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013.

Teorias Contemporâneas do Direito 109

ção de propriedade – usucapião ou sucessão ou compra e venda) e as

consequências dessa instanciação (o conjunto de direitos – usar, fruir e

dispor – e deveres – pagamento de impostos, servidões etc. – decorrentes

do título de propriedade). Nessa linha, o realismo escandinavo27 chega a

defender a tese de que os conceitos jurídicos são, na verdade, despidos de

significado, ou possuem apenas um significado místico ou metafórico e

sua manutenção justifica-se tão somente por seu caráter instrumental ou

intermediário, ao abreviar em apenas um termo o que seria uma longa

descrição de antecedentes disjuntivos e consequentes conjuntivos de

normas jurídicas para cada conceito.

Sartor, ao discutir as duas tradições, sob a ótica de modelos re-

presentacionais de inteligência artificial e direito28, sugere a possibilidade

de conciliação, desde que a concepção ontológica admita derrotabilidade

para as definições categoriais, tornando-as sensíveis e adaptáveis a mu-

danças no sistema normativo, de um lado, e, de outro, assuma-se uma

versão atenuada do compromisso com o domínio da totalidade das conse-

quências e condições normativas envolvidas em cada sistema normativo

por aquele que apreende o conceito. Tal perspectiva conciliadora parece

congênere à forma que a dogmática jurídica e o direito posto de fato inte-

ragem, com influências mútuas. O esforço de definição conceitual pela

dogmática influencia a elaboração de regras pelo legislador ou a funda-

mentação de decisões judiciais, ao passo que mudanças nas regras exigem

reformulações e novas classificações pela dogmática, de modo a que haja

um equilíbrio entre as condições de satisfação de conceitos e suas conse-

quências conforme o sistema normativo e o conteúdo definicional explo-

rado ou discutido pela doutrina.

Essa relação imbricada entre definições doutrinárias e regras ju-

rídicas na formação de conceitos, dentro do conjunto de convicções com-

partilhadas que formam o núcleo daquilo que entendemos por direito,

pode ser melhor aproximada se olharmos mais de perto a concepção infe-

rencial na filosofia da linguagem, ainda que dentro dos limites possíveis

para este artigo.

Atribui-se a origem do inferencialismo à Frege, quando toma a

sentença e não a palavra como elemento primitivo para identificação do

significado. O significado de uma palavra ou termo é, assim, extraído a

27 Ver ROSS, A. Tû-Tû. Scand. Stud. Law 1, p. 139-153, 1957; LINDAHL, L. Deduction

and Justification in the law: the role of legal terms and concepts. Ratio Juris, 17, p.

182-201, 2004.

28 SARTOR, Giovanni. Legal Concepts as inferential nodes and ontological categories.

Artificial Intelligence and Law, 17, p. 217-251, 2009.

Juliano Maranhão 110

partir das condições de verdade da sentença dentro de uma linguagem

lógica29.

Na famosa crítica de Quine aos dogmas do empirismo lógico30

não só as palavras, mas também as sentenças são consideradas como

parte de um corpo coerente de crenças e conhecimento, de modo que suas

condições de verdade são testadas em relação a esse corpo, o que leva a

seu ceticismo quanto à determinação unívoca do significado a partir de

observações de uso de sentenças: corpos coerentes e concorrentes de

crenças e proposições podem ser bem sucedidos em preencher o papel

explicativo do significado de um conjunto de sentenças e dos elementos

subsentenciais diante de informações observacionais do comportamento

linguístico dos usuários.

A semântica de Sellars incorpora essa concepção ao tomar o

significado como derivado do domínio de um corpo de regras de inferên-

cia formais e materiais, o que pressupõe uma interconexão entre senten-

ças na linguagem. Compreender, por exemplo, que alguém é solteiro

envolve compreender e estar disposto a inferir que esse indivíduo é um

ser humano e que não é casado; compreender “vermelho” significa inferir

que é uma cor e que é diferente de azul etc.31. Em concepção ampliada,

Brandom inclui nesse corpo não só inferências materiais necessárias, mas

também aquelas acidentais, como, por exemplo, ao compreender que dois

indivíduos são casados, comprometemo-nos, em geral, com a crença (der-

rotável) de que vivem juntos32. Esse compartilhamento de regras de infe-

rência dá-se, para Brandom, em um jogo de linguagem de reconhecimen-

to mútuo entre os participantes de aplicações e justificação de aplicações

de sentenças e de conceitos nelas inseridos, que explicitam esses com-

promissos inferenciais.

Nesse ponto, Brandom ultrapassa a perspectiva semântica (lin-

guagem-linguagem) e abre a possibilidade para determinação do conteú-

do de conceitos a partir do uso efetivo e do contexto de conversação no

29 FREGE, G. Begriffsschrift: eine der arithmetischen nachgebildete Formelsprache des

reinen Denkens. Halle, 1879. Mas é efetivamente com o segundo Wittgenstein que a

noção representacional do significado é colocada em xeque diante da concepção do

significado como definido a partir do papel desempenhado pelas palavras e enuncia-

dos em um jogo de linguagem (WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investiga-

tions. G. E. M. Anscombe and R. Rhees (Ed.). Trad. by G.E.M. Anscombe. Blackwell,

Oxford, 1964).

30 QUINE, W. V. Two Dogmas of Empiricism. Philosophical Review, 60, 1951.

31 SELLARS, W. Inference and Meaning. Mind, 62, 1953, p, 313-338.

32 Brandom, Robert B. Making It Explicit: Reasoning, Representing, and Discursive

Commitment. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1994.

Teorias Contemporâneas do Direito 111

qual os compromissos mútuos sobre as inferências são constituídos, o que

permite reconhecer também implicaturas pragmáticas, no sentido de Gri-

ce33, naquele conjunto de inferências materiais. Para a composição do que

o falante significa, Grice distingue entre o que se disse (what the speaker

says) e o que se quis dizer (what the speaker implies) com aquilo que se

disse. Na dimensão semântica, por exemplo, não há diferença entre os

enunciados “Meu filho caiu e bateu a cabeça” e “Meu filho bateu a cabe-

ça e caiu”, dado que os enunciados autorizam as mesmas inferências

formais. Porém, em um contexto de conversação da mãe com o médico,

sabemos que há diferença importante entre os enunciados e naturalmente

associamos à conjunção uma ordem temporal (“antes caiu, depois bateu a

cabeça”). Ou seja, o significado inclui não só a ocorrência de ambos os

eventos (o que se disse) como também a sequência temporal (o que se

quis dizer). Tal inferência é justificada por Grice, a partir dos propósitos

de uma conversação, em que os falantes pressupõem mutuamente e se

comprometem (normativamente) a emitir enunciados cooperativos com o

diálogo. A partir daí, destrincha uma série de máximas compartilhadas

em quatro categorias: quantidade (faça uma contribuição nem mais nem

menos informativa que o necessário), qualidade (não emita enunciados

falsos ou diga algo de que não disponha de suficiente evidência), de rela-

ção (emita enunciados relevantes para o contexto do diálogo) e de modo

(seja preciso, breve, ordenado).

Essas máximas da conversação têm a função de constranger

possíveis atribuições de sentido ao excluir hipóteses de atribuição de

intenção ao locutor, o que torna a implicatura uma espécie de inferência

abdutiva34, de modo que o significado pode ser derrotado

,

diante de novas

locuções ou informações sobre o contexto de fala.

Voltando para os conceitos jurídicos, podemos reconhecer na

prática da comunidade dos operadores jurídicos não só inferências formais

dedutivas (a subsunção, o argumento por redução ao absurdo etc.) como

inferências materiais dadas pelas normas jurídicas que ligam condições

fáticas a consequências normativas, esquemas de argumentação não dedu-

33 GRICE, Paul. Logic and Conversation. Studies in the way of words. Cambridge:

Harvard University Press, 1991.

34 Sobre inferência abdutiva ver Josephson, JOHN R.; JOSEPHSON, Susan G. (Eds.).

Abductive Inference: Computation, Philosophy, Technology. Cambridge, U.K.:

Cambridge University Press, 1994; HARMAN, Gilbert. The inference to the best ex-

planation. Philosophical Review, 74. [S.I.: s.n.], 1965. Para sua aplicação ao direito e

relação com a construção de sistemas normativos coerentes ver MARANHÃO, Positi-

vismo Jurídico Lógico-Inclusivo, op. cit., 2013; AMAYA, A. The tapestry of Reason:

An Inquiry into the nature of Coherence and its role in legal argument. Oxford: Hart

Publishing, 2015.

Juliano Maranhão 112

tivos como a analogia, a contrário etc., além de princípios interpretativos

(lex posterior, lex specialis, lex superior) e máximas próximas aos postula-

dos de conversação de Grice, que são traduzidos na figura metafórica do

legislador racional35. Essa personificação do sistema jurídico (também

encontrada no direito anglo-saxão36) é expressão do ideal de unidade que

reúne postulados de competência assumidos na interpretação. Entre eles

estão aqueles postulados absolutos, com a força de descartar atribuições de

sentido que os violem (consistência, justiça, coerência das normas como

meios adequados para alcançar os valores vislumbrados pela legislação) e

os relativos, cuja violação torna a atribuição de sentido menos elegível do

que a atribuição alternativa (completude, precisão, ordem, não redundân-

cia)37. Uma vez explicitados, entendemos os compromissos inferenciais

mútuos na comunidade linguística que permitem a fixação de significados.

Essa determinação do sentido não está propriamente na regra

como ligação inferencial independente e autônoma, uma vez que a interpre-

tação doutrinária a informa e molda a forma pela qual a compreendemos

como parte de um sistema normativo ou de uma ordem jurídica. Assim, a

identificação daquele núcleo de significados e instâncias determinadas, que

permite toda a reconstrução de sistemas normativos locais coerentes,

decorre desse mútuo ajuste entre regras jurídicas, regras de inferência pró-

prios da atividade interpretativa e esquemas conceituais doutrinários.

4 CONCEITOS JURÍDICOS E METÁFORAS

Uma forma particular de inferência compartilhada na compreen-

são da linguagem, de interesse aqui, é aquela derivada do emprego de

35 Sobre o papel epistemológico da figura metafórica do legislador racional na sistemati-

zação e interpretação do direito ver MARANHÃO, J. S. A. Padrões de Racionalida-

de na Sistematização de Normas. Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Di-

reito da Universidade de São Paulo, 2004.

36 Pollock, por exemplo, ao discorrer sobre o sistema jurídico do Common law e sua

racionalidade coloca: “remember that our lady the Common law is not a task-mistress,

but a bountiful sovereign whose service is freedom” (POLLOCK, F. The Expansion

of the Common Law. London: Stevens and Sons, 1904, apud DUXBURY, N.

Frederick Pollock and the English Juristic Tradition. Oxford, 2004.

37 Em Maranhão e Ferraz Junior (Função pragmática da justiça na hermenêutica jurídica:

lógica “do” ou no direito? Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, v. 1, n. 5,

2007) explora-se a ligação entre a noção de legislador racional e as implicaturas de

Grice e em MARANHÃO, J.S.A. Positivismo Jurídico Lógico-Inclusivo, Marcial

Pons, 2013, aponta-se para sua estrutura conceitual em termos de inferências abdutivas.

Teorias Contemporâneas do Direito 113

metáforas. Lakoff e Johnson apontam que as metáforas, mais do que sim-

ples figuras retóricas de linguagem, como tradicionalmente encaradas,

são figuras de pensamento e desempenham papel fundamental na forma-

ção de conceitos e construção de significados, principalmente em relação

ao raciocínio abstrato38. Isso ocorre na medida em que metáforas não são

empregadas isoladamente, mas em clusters e, desse modo, permitem

transferir determinada estrutura de cognição e disposição para agir de um

domínio fonte (source domain), que dominamos intelectualmente, para

um domínio alvo (target domain) de modo coerente. Essa transferência

não só tem papel heurístico, como incorpora determinado sistema de

crenças e valorações que determinam o significado e influenciam o dis-

curso e a ação. Por exemplo, um conjunto de metáforas sobre a argumen-

tação como “ataque essa premissa!”, “defenda-se dessa conclusão!”,

“precisamos construir uma estratégia para vencer a disputa (argumentati-

va)”, “se cair nesse dilema, ficará encurralado” etc. revelam uma catego-

rização básica de que a “argumentação é uma batalha”, o que determina

as disposições para agir: os participantes de uma argumentação são ad-

versários, o objetivo é vencer, há uma causalidade que estrutura o jogo

(cada argumento (ataque) exige um contra argumento (defesa)) etc. Uma

conceptualização diferente, por exemplo, “argumentação é uma constru-

ção” levaria a uma compreensão diferente do significado de argumentos e

o papel dos interlocutores.

O papel inferencial das metáforas na determinação do signifi-

cado pode ser compreendido como uma forma de implicatura cuja com-

preensão pressupõe a máxima de qualidade39. Quando dizemos que “João

é uma pedra de gelo” não queremos, assume-se, veicular uma informa-

ção falsa, mas descrever um aspecto abstrato de sua personalidade e

construir expectativas para ação com base na associação metafórica de

uma experiência física.

Como a subsunção da regra ao caso tem papel central na argu-

mentação jurídica, no direito são frequentes os argumentos ontológicos

ou de “classificação verbal”40, que pretendem determinar se o caso in-

clui-se na extensão do conceito contido na regra. Determinar a “natureza

jurídica” do conflito ou de uma ação cumpre o papel não só de selecionar

as regras aplicáveis, como de determinar o seu sentido. Assim, por exem-

plo, um contrato de compra e venda de mercadoria pode ter conteúdo

38 LACKOFF. G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. The University of Chicago

Press, 2003.

39 MARTINICH. Uma teoria da Metáfora.

40 WALTON, D. Argument from analogy in legal rhetoric, Artificial Intelligence and

Law, v. 21, n. 3, 2013.

Juliano Maranhão 114

distinto (as regras aplicáveis são distintas) caso uma das partes seja con-

siderada “consumidor”. Embora a instância prototípica de “consumidor”

seja a pessoa física que adquire no varejo um produto (onde se presume a

vulnerabilidade daquele), a doutrina estende metaforicamente o conceito

para instanciá-lo também para pessoas jurídicas. Por sua vez, a própria

conceituação de empresa como “pessoa jurídica” é metafórica e permite

operacionalizar uma série de relações multilaterais (entre os sócios e ter-

ceiros) como relações jurídicas bilaterais, quando a empresa é então con-

siderada uma entidade unívoca, com vontade própria e autônoma, portan-

to com responsabilidade individualizada41.

As metáforas estão disseminadas no discurso jurídico e desem-

penham papel importante na construção conceitual e na estrutura do or-

denamento42. O interesse no seu estudo está no fato de que, muitas vezes,

passam desapercebidas. As metáforas não vêm com rótulos, a exemplo de

outras figuras jurídicas em que regras explicitamente determinam se um

item deverá, ainda que contra a linguagem natural, ser enquadrado em

determinado

,

conceito por equiparação (presença de semelhanças relevan-

tes e diferenças secundárias) ou por ficção (apesar da diferença reconhe-

cida). Ao contrário, são incorporadas no discurso e argumentação jurídi-

cas como parte da “natureza” ou “essência” de institutos e acabam por se

tornar arraigadas. É importante trazê-las à tona por três motivos.

Primeiro, a transferência do conceito do domínio fonte para o

domínio alvo baseia-se em analogias, que, obviamente, nunca são perfei-

tas: pode-se deixar traços importantes do domínio fonte de fora quando

empregado no domínio alvo e pode-se carregar aspectos do domínio fonte

que são incompatíveis com o domínio alvo. Lakoff chama atenção para o

fato de que “ao fazer com que foquemos um aspecto do conceito... o con-

ceito metafórico pode nos impedir de focar outros aspectos do conceito

que são inconsistentes com aquela metáfora”43.

41 Uma passagem de Felix Cohen ilustra bem a consciência dessa metáfora e consequên-

cias para a interpretação jurídica “Nobody has ever seen a corporation. What right

have we to believe in corporations if we don’t believe in angels? To be sure some of

us have seen corporate funds, corporate transactions, etc… But this does not give us

the right to hypostatize, to “thingfy”, the corporation, and assume that it travels about

from State to State as mortal men travel”(COHEN, Felix. Tanscedental Nonsense and

the functional approach, 35, Columbia Law Rev, 809, p. 810-11, 1935 apud WINTER,

Re-Embodying Law. Mercer Law Review, v. 58, 2006-2007).

42 WINTER, Steven L. A clearing in the forest: law, life and mind. University of Chicago

Press, 2001.

43 “In allowing us to focus on one aspect of a concept … a methaphorical concept can

keep us from focusing on other aspects of the concept that ar inconsistent with that

Teorias Contemporâneas do Direito 115

Segundo, as metáforas carregam valorações próprias do domí-

nio fonte que acabam por moldar o domínio alvo. Winter chama a aten-

ção, por exemplo, para a influência da famosa figura de linguagem usada

por O.W. Holmes (“marketplace of ideas”) que traça um paralelo entre o

livre comércio e a liberdade de expressão. Nesse movimento, sub-

repticiamente foi relativizada a importância da verdade do discurso (não

há a verdade, assim como não há o melhor produto) para valorizar a auto-

nomia individual e livre manifestação do pensamento (a maior dissemina-

ção possível de ideias fontes diversas e antagônicas), onde a maior chance

de se aproximar da verdade é tomada como produto da competição44.

Por fim, a alteração ou emprego de metáforas para reinterpretar

conceitos jurídicos reflete mudanças culturais e valorativas e constitui

uma forma importante pela qual o direito se flexibiliza para acomodar

novas formas de conflitos sociais.

A alteração dos conceitos por meio de metáforas é sutil e nor-

malmente envolve ajustes mútuos entre definições dogmáticas e as fon-

tes. Por exemplo, se a fonte de direito inclui pessoas jurídicas em instan-

ciações inferidas a partir de “consumidor”, para descrever e explicar essa

instanciação, a dogmática é levada a modificar sua teoria para que man-

tenha seu poder explicativo, transferindo a raiz do conceito de consumi-

dor do indivíduo (“indivíduo que consome um bem”) para a relação da

qual ele participa, “relação de consumo”, de modo que consumidor passa

ser qualquer indivíduo que participa daquela relação. Como corporações

também podem ocupar o polo de uma relação jurídica de consumo (ainda

que sua individualidade seja uma construção também metafórica), tam-

bém são consumidores. Ao se adotar essa conceituação, considerando que

“relação de consumo” é aquela que se opõe à relação inserida na cadeia

produtiva, mesmo pessoas físicas que adquiram no varejo, ainda que vul-

neráveis diante de empresas, não mais se enquadram na condição de

“consumidor” quando, por exemplo, a compra do bem for destinada a uso

profissional (o que pode influenciar operadores jurídicos, transformando-

-se mais uma vez o conceito por sua acepção inferencial)45.

metaphor” LACKOFF. G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. The University of

Chicago Press, 2003, p. 10.

44 WINTER, S. Re-Embodying Law. Mercer Law Review, v. 58, 2006-2007.

45 Tais mudanças não são diretas ou uniformes, envolvendo, na verdade, teorias intepre-

tativas concorrentes, de modo que há sistemas normativos alternativos para lidar com

as questões em foco. No caso da conceituação de “consumidor”, no Brasil, há pelo

menos três visões conflitantes em instanciações que variam em função de critérios

como uso profissional, finalidade, hipossuficiência, dentre outros.

Juliano Maranhão 116

5 METÁFORAS E DESAFIOS AO DIREITO POSTOS

PELO AMBIENTE DIGITAL

O chamado “direito digital” é um campo particularmente inte-

ressante para observar essas transformações do sistema normativo por

meio de metáforas. Como se encontra em statu nascendi, permite visuali-

zar de que forma a relação de coerência de um particular ramo se conecta

com outros subsistemas do ordenamento por meio de ligações conceituais

e inferenciais. Por outro lado, os conflitos no ambiente digital exigem dos

operadores os o emprego para o “mundo virtual” de conceitos jurídicos

originalmente construídos com referência ao mundo físico. E esse esforço

lida com questões ontológicas sobre a essência de uma tecnologia ou de

uma aplicação na internet, onde as metáforas desempenham papel central.

Por exemplo, a condenação, na Suécia, dos desenvolvedores do

site Pirate Bay girou em torno de disputa sobre qual a “natureza” de um

site indexador e de busca de arquivos para compartilhamento via “tor-

rent”: o site seria uma “plataforma” onde potenciais violadores de direi-

tos autorais apenas se comunicam (sem responsabilidade pelo site) ou um

“quadro de avisos” que estimula a prática de violação autoral?46 Outro

exemplo é a discussão sobre se o streaming de músicas na internet signi-

fica “reprodução pública” sujeita a remuneração por direitos autorais47,

ou ainda, se o envio em massa de spams ou o uso de softwares robôs para

baixar conteúdo de webpages poderia se algum tipo de “invasão de pro-

priedade” etc.

A própria compreensão do que é a “internet” é metafórica48.

Uma das metáforas importantes a concebe como uma “autoestrada de

informação” (“information superhighway”). Assim como estradas estão

sujeitas a regulação do Estado para garantia de segurança, essa metáfora

carrega consigo o valor e importância da regulamentação. Por outro lado,

tende a ver a internet de uma perspectiva externa, ou seja, como mais um

meio de comunicação entre usuários, o que os alinha com a concepção de

46 LARSSON, S. Metaphors, Law and digital phenomena: the Swedish pirate bay court

case. International Journal of Law and Information Technology, v. 21, n. 4, p 354-

-379, 2013.

47 O tema, ao lado da legalidade do compartilhamento de músicas, é discutido em várias

jurisdições. No Brasil, aguarda decisão pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp.

1559.264-RJ (2013/0265464-7), Rel. Ricardo Villas Boas Cueva).

48 Ver BLAVIN, J. H.; COHEN, Glen. Gore, Gibson and Goldsmith: the evolution of

internet metaphors in law and commentary. Harvard Journal of Law & Technology,

v. 16, n. 1, 2002.

Teorias Contemporâneas do Direito 117

que a internet não exige regulação específica, apenas a aplicação do direi-

to existente a um novo objeto. As implicações são bem distintas caso se

adote a ideia de que a internet é um “lugar” ou “espaço” virtual (cybers-

pace), com uma geografia própria e lugares fixos (sites, home-pages, chat

rooms). Aqui, a perspectiva é interna: o usuário não está fora e se comu-

nica por meio do computador, mas vive experiência virtual dentro de um

novo

,

espaço. Ilustrando a diferença, a metáfora de invasão de proprieda-

de para combater o uso de robôs que baixem conteúdo de um site cabe

aqui, mas não se encaixa na perspectiva externa da internet como uma

estrada49. Como na perspectiva interna tratamos de um novo espaço de

relações, deveria haver uma regulação específica e excepcional.

Embora hoje a metáfora espacial para a internet seja predomi-

nante, ela não superou o impasse entre excepcionalistas e não excepcio-

nalistas, uma vez que a discussão passou a ser “quão diverso é o espaço

virtual em relação ao real?”. Os excepcionalistas defendem que há uma

diferença essencial, ao passo que os não excepcionalistas vêem apenas

uma diferença de grau50.

Como nota Cohen, ambas as visões concebem o ciberespaço

como algo diferente e separado do espaço real, de forma que, assim cons-

truído, o debate perde a “interligação entre a geografia real e a digital”,

de modo que a questão correta deveria ser “que tipo de espaço é e virá a

ser o mundo que inclui o ciberespaço”51. Aqui, Cohen chama atenção

para o fato de que conflitos surgidos na internet afetam nossas relações

individuais no mundo real e vice-versa de modo que a regulação deveria,

antes, conceber um só espaço de relações jurídicas, que inclui a internet.

A perspectiva de Cohen parece importante para capturar o tipo

de alteração estrutural em curso nos sistemas normativos, em função das

49 Há uma versao mais liberal que vê a internet como um espaço sem fronteiras, interna-

cional, portanto não sujeito a qualquer regulação Estatal (ver BLAVIN; COHEN,

Glen, op. cit.). Essa disputa entre metáforas liga-se ao famoso debate “Law of the

Horse” entre Judge Frank Easterbook, defendendo que a internet era apenas um novo

objeto para o direito já existente (EASTERBROOK, F.H. Cyberspace and the law of

the Horse. University of Chicago Legal Forum, 2017 (1996)), e Lessig, defendendo o

direito digital como um novo ramo, com regulação e soluções jurídicas específicas

(LESSIG, L. The Law of the Horse: What Cyberlaw Might Teach?, Harvard Law

Review, 501, 1999), controvérsia que originou duas correntes antagônicas (não ex-

cepcionalistas vs excepcionalistas).

50 O debate é amplo principalmente na dogmática e jurisprudência norte-americana: ver,

por exemplo, BELLIA, P.L. BERMAN, P.S.; FRISCHMANN, B.M.; POST, D. G.

Cyberlaw: problems of policy and jurisprudence in the information age. 4. ed. West Pub.,

2011; COHEN, J. Cyberspace as /and Space, 107. Colum. L. Rev., p. 210-256, 2007.

51 COHEN, J. Cyberspace as /and Space, 107. Colum.L.Rev., 2007, p. 213.

Juliano Maranhão 118

relações travadas por meio da tecnologia da informação. Aplicando-a

para as questões aqui levantadas sobre a inter-relação e o conteúdo infe-

rencial dos conceitos jurídicos, percebe-se que se concebermos o direito

digital como apenas mais um ramo do direito, a reconstrução conceitual

tende a ser unidirecional: o novo ramo importa e adapta conceitos jurídi-

cos básicos e gerais, de modo a criar um novo subsistema na periferia da

rede que compõe o ordenamento. Todavia, o chamado direito digital pa-

rece ter papel bem mais disseminado e ativo, dada a crescente importân-

cia da comunicação digital em todos os campos das relações sociais, de

modo que afeta e traz novos desafios para diversos ramos do direito, co-

mo, por exemplo, responsabilidade civil (responsabilidade de intermediá-

rios provedores de aplicativos ou de acesso à internet), direito internacio-

nal (agentes múltiplos de diferentes nacionalidades envolvidos na mesma

relação comunicativa, seja por participação seja por prover os meios),

direito do trabalho (novas relações de trabalho como outsourcing e

crowdsourcing e nova relação entre local e jornada de trabalho viabiliza-

da pela comunicação), direito concorrencial (o papel da inovação na di-

nâmica de competição e redefinição do conceito de poder de mercado),

direito contratual (e.g. contratos fechados por agentes eletrônicos, licen-

ciamento em regime livre-creative commons), direito tributário (dúvidas

sobre conceituação de produtos ou serviços na internet para aplicação de

tributação ou sobre o local de determinada relação comercial) etc.

Assim, é importante atentar para a direção reversa: qual é o im-

pacto do esforço de reconstrução conceitual para adaptar ao ambiente

virtual conceitos jurídicos fundamentais, como propriedade, responsabili-

dade civil, personalidade jurídica, relação pública ou privada etc. na es-

trutura do sistema normativo como um todo? A partir da interação acima

destacada entre a atividade doutrinária e alterações nas regras para mútuo

ajuste entre definições e inferências jurídicas (ou instanciações normativas

autorizadas), espera-se, por exemplo, que novas regras para a internet que

ampliem instanciações vigentes sobre “responsabilidade de intermediá-

rios” (para sites de busca), ou decisões que ampliem o que se entende por

“reprodução pública de conteúdo” (para alcançar peer to peer streaming),

não fiquem circunscritos à internet. Tais alterações deverão exigir novas

conceituações doutrinárias, capazes de explicar ambos os conjuntos de

implicações normativas (no espaço real e na internet) de modo a permitir

uma apreensão coerente do ordenamento. Com isso, não só se cria novo

entendimento para uma específica violação de direito autoral na internet,

ou o que se entende por responsabilidade por outros tipos de violação

(não autorais) na internet, mas potencialmente se altera o que entendemos

sobre responsabilidade civil de intermediários, sobre o próprio conceito

Teorias Contemporâneas do Direito 119

de responsabilidade civil, sobre o que entendemos por direito de autor e

qual a extensão de sua proteção, ou ainda sobre o que é hoje o espaço

público em oposição ao privado.

Com isso, os conflitos no âmbito digital e o esforço de

conceituação jurídica podem não se limitar a alterações de sistemas

normativos na periferia, mas transformar o próprio núcleo de conceitos

jurídicos básicos sobre qual ordenamento se constitui. Vou buscar ilustrar

o tipo de dificuldade trazida pelas inovações surgidas no ambiente de

comunicação digital com a discussão sobre a conceituação do chamado

“software livre”.

A criação e licenciamento de softwares em regime livre é um

exemplo típico de nova forma de produção propiciada pela internet, na

qual uma comunidade aberta e indeterminada de indivíduos contribui

com o desenvolvimento de uma criação intelectual (creative commons).

Essa forma de criação cooperativa, por si, já é difícil de encaixar no

modelo autoral, que personaliza “proprietários de sua criação” e só

conhece colaboração criativa na forma de coautores, igualmente pro-

prietários.

Em relação ao software, diferentemente do licenciamento em

regime proprietário, no qual o licenciado obtém apenas o direito de

executar o programa no computador, na licença livre o licenciado tem

também o direito de visualizar o código fonte, alterá-lo e redistribuí-lo

(direitos que são exclusivos do autor no regime proprietário). Em alguns

tipos de licenças, chamadas licenças recíprocas, impõe-se ao licenciado,

o dever de manter o regime livre de licenciamento caso desenvolva

alguma derivação e pretenda distribuí-la (o chamado copyleft). Esse

regime de licenciamento é amplamente disseminado na internet. Ocorre

que a simples pergunta sobre se tais licenças seriam válidas perante o

direito vigente leva a uma intrincada rede de metáforas.

Inicia-se pelo direito autoral, que já é conceituado metaforica-

mente como propriedade, incorporando uma série de características e

direitos próprios da propriedade física52, mas que foi originalmente con-

cebido como um privilégio de editores/impressores de produzir cópias de

obras com exclusividade (copyright). A semelhança com propriedade

estava apenas na exclusividade, mas a noção foi até mesmo aproximada

da propriedade física sobre

,

do constitucionalismo

além do Estado nacional. A emergência da nova disciplina ‘sociologia da

constituição’ é o produto dessa empreitada8.

6 TEUBNER, Gunther. Verfassungsfragmente: Gesellschaftlicher Konstitutionalismus

in der Globalisierung. Berlin: Suhrkamp, 2012; TEUBNER, Gunther. Constitutional

fragments: societal constitutionalism and globalisation. Oxford: OUP, 2012;

TEUBNER, Gunther. The project of constitutional sociology: irritating nation state

constitutionalism. Transnational Legal Theory, v. 4, p. 44-58, 2013; TEUBNER,

Gunther; BECKERS, Anna. Expanding constitutionalism. Indiana Journal of Global

Legal Studies, v. 20, n. 2, p. 523-550, 2013; TEUBNER, Gunther. Constitutionalism

in the transnational society. Quaderni constituzionale, v. 1, p. 185-204, 2014.

7 Veja também FORTES, Pedro Rubim Borges. We the fans: should international

football have its own constitution?, Southwestern Journal of International Law, v.

21, p. 63-70, 2014.

8 THORNHILL, Chris. A sociology of constitutions: constitutions and state legitimacy

in historical-sociological perspective. Cambridge: CUP, 2011; FEBBRAJO; Alberto;

CORSI, Giancarlo. Sociology of constitutions: a paradoxical perspective. Abingdon-

-on-Thames: Routledge, 2016; NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São

Paulo: Martins Fontes, 2009; SCHWARTZ, Germano; PRIBAN, Jirí; ROCHA,

Leonel Severo da. Sociologia sistêmico-autopoiética das constituições. Porto Ale-

gre: Livraria do Advogado, 2015.

Pedro Fortes / Ricardo Campos / Samuel Barbosa (Coords.) 14

O ensaio de Pedro Villas Boas também se inclui no debate so-

bre a unidade e a identidade do direito, na medida em que introduz a im-

portante questão do conceito político para a discussão das incertezas

normativas. Partindo do pensamento do jurista alemão Carl Schmitt, o

autor afirma que o processo de secularização ocidental e a consequente

formação de estados nacionais territoriais não tem como consequência a

neutralização do conflito social, mas a visibilidade do antagonismo social.

Conforme o diagnóstico apresentado pelo professor da UERJ, o conceito

de político de Carl Schmitt seria essencial para entender esse longo pro-

cesso de secularização e criação de estados nacionais e, acima de tudo,

como a relação entre amigo e inimigo ganha outra roupagem dentro do

direito da esfera internacional.

Ricardo Campos, por sua vez, apresenta um contraponto ao en-

saio de Pedro Villas Boas, reconstruindo a ideia do surgimento do jus

publicum europaeum também a partir da obra de Carl Schmitt. Contudo,

o enfoque de seu ensaio é especialmente no desenvolvimento conceitual

diferenciado do conceito de político. Haveria mais uma reconstrução

conceitual do surgimento do direito internacional do que a polarização

entre amigo e inimigo típico da teologia política. O autor conclui que com

a queda do jus publicum europeaum e a correlata dispersão da soberania

pelo globo com a consequente mudança do status territorial em grande

parte do mundo teria ocorrido uma nova abertura para o absoluto sem

religião: a modernidade. Nessa, há uma nova forma de articulação de

poder, direito, economia, que não mais ligada ao centralismo unitário.

Encerrando o primeiro eixo, o ensaio de Pedro Fortes também

explora a questão da identidade e da unidade do direito. O professor da

FGV DIREITO RIO critica e revisa aspectos fundamentais da teoria sis-

têmica do direito de Niklas Luhmman. Conceitos tradicionais como aco-

plamento estrutural, autopoiese e codificação autorreferencial são substi-

tuídos por um novo conjunto de conceituações – agrupamento estrutural,

pluripotência, e fusão de vários elementos normativos. Diante da crescen-

te interdisciplinaridade, a ideia da exclusividade do direito como o único

elemento normativo para a codificação dos sistemas jurídico não se ba-

seia em evidências empíricas relacionadas com o universo do direito na

sociedade. Em contraste, a observação empírica do Estado constitucional

contemporâneo evidencia uma articulação de vários elementos normati-

vos e proporciona uma fusão de elementos normativos provenientes de

direito, política, economia e religião. A cultura jurídica é apresentada

como um caleidoscópio, influenciada por ideias plurívocas e acomodando

múltiplas perspectivas sobre os fenômenos jurídicos.

Teorias Contemporâneas do Direito 15

Este texto oferece também uma ponte de travessia para o outro

eixo do volume, na medida em que expõe a crise de identidade interna do

direito e a constante busca de elementos normativos interdisciplinares

para justificar as decisões jurídicas. O dogma da clausura normativa do

direito e da autopoiese certamente perdeu sua força explicativa. Em busca

de sua alma, o direito recorre à fé na ordem jurídica, a geografias morais,

à lógica, à busca pela felicidade, a estéticas contingentes e à tecnologia

cibernética. Além disso, as redes de relacionamento e o pluralismo de

valores também devem ser considerados pelas teorias do direito.

Ino Augsberg inaugura o novo eixo a partir de uma vereda inte-

ressante da relação entre direito e incertezas normativas. Partindo da pa-

radoxal constatação de que o crescente aumento de conhecimento tende a

gerar mais incerteza e maior necessidade por conhecimento, o Professor

Catedrático de Teoria do Direito da Universidade de Kiel vislumbra o

problema em técnicas jurídicas de abrogação para gerenciar o conheci-

mento. Nesse sentido, Ino Augsberg defende a suplementação do concei-

to de autopoiese do direito – que privilegia a autoprodução jurídica – pela

autopistis jurídica – em que a fé na ordem jurídica, sem autoridade exte-

rior, deveria caminhar lado a lado do cotidiano operacional do sistema

jurídico.

A contribuição de Samuel Barbosa discute a categoria de “espa-

ço jurídico” para a pesquisa histórica. O objetivo é criticar uma imagem

clássica herdada da Teoria Geral do Estado que reduz o espaço jurídico

ao território nacional, um dos elementos do conceito de Estado. O profes-

sor da USP traz um conjunto de indicações programáticas que apontam

para outras formas de espaço e de território. É desenvolvida a tese de que

há uma relação constitutiva entre direito e espaço. O direito atribui senti-

do e configura diferentes formas de espaços jurídicos (propriedade priva-

da, territórios, jurisdições, zonas de imunidade, fronteiras, dentre outros)

e também definem “geografias morais” ou expectativas sobre o lugar

adequado para as pessoas; o espaço, por sua vez, condiciona a reprodução

do direito, a exemplo da importância das distâncias e do desafio de publi-

cizar o direito. Esta reconfiguração aponta para a pluralidade de ordens

normativas fora do enquadramento estatal, articulado em redes, sem uma

base territorial estável.

Fábio Shecaira, por sua vez, traz para o debate “o outro” da teo-

ria da cultura, ou seja, a importância do silogismo dentro da argumenta-

ção jurídica. O professor da UFRJ analisa também outras formas de

argumentação jurídica, como a ponderação e a analogia, que entretanto

não possuem validade dedutiva. Visando uma consistência maior na argu-

mentação jurídica, Fábio Shecaira propõe uma regra de conversão dedu-

Pedro Fortes / Ricardo Campos / Samuel Barbosa (Coords.) 16

tiva, a qual processos interpretativos como a analogia e ponderação deve-

riam incorporá-las aproximando-se da estrutura dos argumentos deduti-

vos com premissas genéricas plausíveis.

A teoria comportamental vira o importante fio condutor da

abordagem de Noel Struchiner e Úrsula Vasconcelos. Os autores partem

da metáfora da maquina fotográfica moderna para compreender a cons-

trução do direito à felicidade. Para tanto, eles se valem dos estudos em

torno das pesquisas comportamentais. A tese central dos autores é que há

um hiato entre a previsão dos tomadores de decisão e dos afetados pela

decisão. Isso é fundamentado baseando-se em várias dimensões dessa

possibilidade de previsão. Os estudos

,

a cópia por parte das editoras. Essa conceitua-

52 HERMAN, Bill, D. Breaking and entering my own computer: the contest of copyright

metaphors, Communication Law and Policy, p. 231-274, v. 13, 2008. Ver também

LARSSON, S. Metaphors and Norms: Understanding Copyright Law in a Digital

Society. Lund: Lund University, 2011.

Juliano Maranhão 120

ção perde a força com o barateamento da tecnologia de reprodução, de

modo que as editoras passaram a se apegar na sua relação contratual com

os autores e defender, então, o direito de autor como proteção jurídica ao

criador da obra, concepção que vai aparecer na França revolucionária,

com ares de um “direito natural do criador” e se consolidar no séc. XIX,

tendo seu reconhecimento internacional na convenção de Berna de

188653. Na medida em que é incorporado à esfera de interesses do autor,

também sua nota central é o poder de autorizar com exclusividade a re-

produção da obra. É essa nota de “exclusividade” sobre o elemento físico,

industrial, a reprodução sobre determinada mídia, que o vincula à ideia de

um título de propriedade. Mas a verdade é que a obra transcende ao meio

e à sua reprodução, sendo, aliás, por sua natureza, não rival: ao contrário

do que ocorre com bens imóveis ou corpóreos, o uso por um ou muitos da

mesma obra não impede o uso por outros. Mais do que isso, é o uso por

outros e a divulgação cultural que parecem conferir a um conteúdo inte-

lectual o caráter de conteúdo artístico.

Esse aspecto cultural da comunicação e relação do autor com o

público é que aos poucos elevou a proteção jurídica a uma esfera mais

abstrata, não só patrimonial, mas moral, com o reconhecimento de uma

relação íntima entre o autor, como sujeito de direito, e a obra, como um

objeto abstrato, reforçada por mais uma metáfora (o pai e sua criação, de

onde entendemos a indisponibilidade e irrenunciabilidade do direito mo-

ral). Embora ambas metáforas para o autor (o “proprietário” e o “pai”)

funcionem bem para uma série de aplicações, algumas perplexidades surgi-

ram na doutrina e jurisprudência, quando a analogia entre autor e proprie-

tário ou entre obra e res não funcionava adequadamente, como, por exem-

plo, a dificuldade de se identificar, em obras coletivas, aquele que pode ter

a “natureza de autor” e a separação doutrinária entre o “autor moral” (o

diretor ou criador do argumento de uma obra audiovisual) e o “autor patri-

monial” (o produtor). O que ocorreu, nesse passo, foi a separação entre o

“pai” e o “proprietário”, ainda que, inadvertidamente, seria a “paternidade”

o fator a justificar a aplicação analógica da ideia de propriedade.

53 Ver MERGES, Robert P.; GINSBURG, Jane C. Foundations of Intellectual Property.

New York: Foundation Press, 2004, (Cap. II, I, A) e, particularmente, sobre as origens

e mesmo questionamento da oposição usual entre o modelo francês/continental, orien-

tado para a noção de propriedade do autor, e o modelo anglo-americano, orientado

para o público e a divulgação da obra (daí a concessão, como estímulo à atividade de im-

pressão, de privilégios aos editores) ver GUINSBURG, J. A Tale of two Copyrights:

literary property in Revolutionary France and America, Tulane Law Review, 64,

1990. Ver também GOLDSTEIN, P. Copyright’s Highway: from Gutenberg to the

celestial jukebox. Stanford University Press, California, 2003, para uma análise evolu-

tiva do direito de autor à luz das transformações na tecnologia de reprodução.

Teorias Contemporâneas do Direito 121

A metáfora subsequente para a conceituação jurídica de softwa-

re vem com sua equiparação à obra literária. Na legislação brasileira (Lei

9.609/1998), pela definição adotada, considera-se obra literária não só

sua expressão no código fonte, das regras do programa que estão mais

próximas de uma formulação em linguagem natural, mas também no

código objeto, i.e., na linguagem de máquina, em que o software se apro-

xima mais de uma funcionalidade ou produto (aliás, daqui surgem os

impulsos para protegê-lo como propriedade industrial).

Nessa conceituação metafórica, o regime proprietário já carrega

problemas latentes. Como não há propriedade sobre ideias, os direitos

autorais sobre software (uso exclusivo, cópia, modificação, etc.) recaem

sobre a criação intelectual, i.e., a forma de expressão, não sobre o conhe-

cimento subjacente (conteúdo científico ou técnico). Mas se nas obras

literárias prototípicas é perfeitamente possível dar cumprimento à regra

de proteção à forma de expressão e, ao mesmo tempo, permitir a propa-

gação do conhecimento ou cultura (não apropriável), no caso dos softwa-

res, como a linguagem objeto é codificada para execução em máquina, a

inacessibilidade do código fonte aos demais usuários encerra uma aparen-

te contradição. O regime proprietário torna o conteúdo técnico, no míni-

mo, próprio (de fato).

Essa restrição está na raiz do movimento intelectual de defesa

do software livre, que vê na proteção ao código fonte verdadeira apropria-

ção (de direito) de conhecimento a ser oposta por um compromisso mú-

tuo de comunhão54. Mas para que essa comunhão de conhecimento sobre

o conteúdo técnico de um software seja garantida, é necessário o copyleft,

presente nas licenças recíprocas. E aqui surge uma dificuldade importan-

te: em grande parte das jurisdições com proteção autoral, reconhece-se

também a propriedade de um autor de obra derivada sobre sua derivação.

Se o autor da derivação é proprietário, então tem o direito de livre dispo-

sição, o que é inconsistente com o copyleft.

Às voltas com o problema e presos na metáfora de propriedade,

juristas falam de licenciamento em regime livre como “abdicação do

direito de autor” ou de “conteúdo sem autor”, o que o descaracterizaria

como obra, caindo fora da proteção autoral (algo não congênere com o

poder conferido a cada participante da cadeia de desenvolvimento do

software por licenças livres recíprocas para contestar derivações fecha-

das). Ou ainda, buscam fundamentar o copyleft em uma espécie de função

social da propriedade do software. Esses são sintomas do esgarçamento

54 FUGGETA, Alfonso. Open source and Free Software: a new model for software

development, 2004.

Juliano Maranhão 122

de uma metáfora que precisa ser colocada à mostra no esforço de concei-

tuação. Não se trata de abdicação, pois o copyleft impõe importantes

obrigações aos licenciados. A função social também não se encaixa, uma

vez que o licenciamento em regime proprietário ou mesmo a derivação

são formas de emprego produtivo. Também seria difícil sustentar que

haveria “abuso de direito” com o fechamento do código fonte. Aqui o

jurista se vê bloqueado em um labirinto de definições e conceitos assumi-

dos como dogmas. E para explicar essa forma de licenciamento e as obri-

gações delas derivadas de modo coerente terá que desafiar metáforas

arraigadas como “software é obra literária” ou “direito de autor é pro-

priedade”.

6 CONCLUSÃO: UMA HIPÓTESE

Qual o tipo de dificuldade trazida por casos como a validade de

licenças de software livre ou da produção colaborativa comum (creative

commons)? Não se trata de lacuna, nem de penumbra, uma vez que a

titularidade do autor da obra derivada sobre sua derivação é claramente

reconhecida pela legislação. Também não se trata de incoerência entre o

comando da regra e sua justificação política, que convergem nesse ponto.

Há alguma proximidade entre o conflito, no caso entre a licença livre e a

legislação autoral, mas nesse caso não haveria preocupação, pois a hie-

rarquia já o teria resolvido. Talvez haja um problema de eficácia com a

disseminação da licença entre os programadores. Mas além de haver

eficácia para uma série de aplicações da proteção ao autor da obra deri-

vada, que sequer é questionada, o ponto não é apenas fático: há uma pres-

são

,

normativa entre os participantes, o que significaria aceitar vínculo

obrigacional a conteúdo extralegal.

Como procurei mostrar, a impressão de extralegalidade pode ser

sutilmente absorvida com a modificação das metáforas envolvidas. Mas

há, por trás desse movimento, a percepção de um dever, que em um pri-

meiro momento tem conotação moral, derivado de uma ética própria dos

usuários de internet, mas que pode ganhar juridicidade, também pela

incorporação de novas metáforas.

A dificuldade se repete em formas similares de produção cola-

borativa na internet, que envolve compromissos mútuos, portanto obriga-

ções mútuas, sem que se identifique um “titular”. Isolar cada participante

como detentor individual de “direitos subjetivos” e sua relação como um

conjunto de trocas, pela livre disposição desses direitos exclusivos, não

Teorias Contemporâneas do Direito 123

reflete adequadamente a prática ou os valores que a eles são subjacentes55.

Isso significa que a própria metáfora e crença em uma distribuição equili-

brada de “direitos” para cada indivíduo livre, que está na base do que com-

preendemos como direito, desde a era moderna, pode ser desafiada.

Wolfgang Hoffmann-Riem nota bem a alteração da concepção

da liberdade no campo informático e propõe uma nova conceituação de

liberdade como reciprocidade:

o direito à autodeterminação informacional é, em consequência, não

um direito de defesa privatístico do indivíduo que se põe a parte da

sociedade, mas objetiva possibilitar a cada um uma participação em

processos de comunicação. Outros [seres humanos] constituem o âm-

bito social, em cujas lindes a personalidade de cada um se expande: a

autonomia, e não a anomia, do indivíduo é a imagem diretora da

Constituição. A autonomia deve ser possível em espaços vitais social-

mente conectados, nos quais a liberdade de comunicação – ou melhor:

a liberdade em comum – não pode ser orientada para um conceito li-

mitador da proteção à expansão egocêntrica, mas deve ser entendida

como o exercício da liberdade em reciprocidade. Esta liberdade não é

ser livre dos outros, mas liberdade por intermédio dos outros56.

Como no ambiente virtual a liberdade se aproxima da liberdade

de comunicação ou livre expressão, a noção de exercício da liberdade fica

mais próxima do acesso e participação em uma comunidade de

interlocutores e não da garantia de um espaço de não impedimento ou de

ação autônoma. Assim, a tecnologia da informação não só afeta conceitos

fundamentais como personalidade57, propriedade58 e responsabilidade59,

55 Ver. BOYLE, James. The Second Enclosure Movement and the Construction of the

Public Domain. Disponível em: ;

RIFKIN, J. The age of Access: How the shift from ownership to access is transform-

ing modern life. London: Penguin, 2000; BENKLER, Y. Coase’s Penguin, or Linux

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. Hunter, D. Cyberspace as Space and the

Tragedy of the Digital Anticommons, 91, Cal. L.Rev. 439, 469-75, 2003.

56 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Rechtliche Rahmenbedingungen. In: BÄUMLER,

Helmut (Org.). Der neue Datenschutz. Neuwied/Kriftel: Luchterhand, 1998. p. 13.

57 TEUBNER, G. Rights of non-humans? Eletronic agents and animals as new actors in

politics and law. Journal of Law and Society, 33, p. 497-521, 2006; ver também

WEITZENBOCK, E. Good faith and fair dealing in contracts performed by electronic

agents, Artificial Intelligence and Law, 12, 2004.

58 MARANHÃO, J. S. A.; FERRAZ JUNIOR, T. S. Free Software and non-exclusive

individual rights. Archiv für Rechts und Sozialphilosophie-ARSP, v. 94, 237-252,

2008; FAIRFIELD, J. Virtual Property, 85, B.U.L.Rev 1047, 2005.

Juliano Maranhão 124

como mexe com a noção de liberdade presente na fundamentação subja-

cente a esses conceitos.

Trata-se de uma dimensão mais profunda da construção de

valores sobre as práticas no ambiente digital ou, como prefere Cohen, das

práticas no ambiente que inclui a comunicação digital, que não se limita

ao sopesamento de valores ou direitos fundamentais opostos, também

frequentes nos conflitos envolvendo a internet (por exemplo, a pondera-

ção entre liberdade de expressão vs privacidade, ou segurança vs privaci-

dade)60. Parece estar em jogo aqui uma reconstrução conceitual desses

valores subjacentes ligada também a uma reconstrução de conceitos jurí-

dicos fundamentais, que são nucleares para nossa concepção do direito

hoje.

O tipo de transformação guarda paralelo com outro momento

histórico de revolução tecnológica. Um jurista na virada do séc. XIX para

o Séc. XX talvez tenha percebido de forma menos cataclísmica o surgi-

mento do direito trabalhista apenas como um novo ramo do direito. Mas

uma antiga metáfora, “trabalho é um bem (commodity)”, crucial para o

desenvolvimento da economia de mercado61, começava a ser desafiada. O

trabalho passava a ser visto como um veículo de integração social que

merece proteção e a relação entre empregado e empregador não como

aquela de “venda da força de trabalho” por contrato individual, mas como

uma relação entre classes sociais, sujeita a regramentos gerais voltados

para o equilíbrio de forças. A modificação foi gradativa e encontrou al-

guns “pontos cegos”, como, por exemplo, a punição a sindicatos, nos pri-

mórdios do direito concorrencial, por formação de cartel (combinação de

ativos)62. Mas a alteração não ficou circunscrita ao “contrato de trabalho”,

dado que a doutrina precisaria adequar a própria noção de “contrato”, cuja

definição, antes calcada na “encontro entre manifestações de vontade li-

vre”, passou a incorporar a ideia de “equilíbrio das prestações”. Mudan-

ças importantes também afetaram a noção de propriedade, que também

ganhou dimensão social e se tornou mais abstrata com a incorporação, em

59 Ver STROWEL, A. (Ed.). Peer-to-peer file sharing and secondary liability in

copyright law. Edward Elgar, 2009.

60 Sobre os valores e direitos humanos presentes no ambiente digital, ver JORGENSEN,

R.F. Human Rights in the in the Global Information Society. Cambridge, Mass:

MIT, 2006; KLANG, M.; MURRAY, A. Human Rights in the Digital Age. London:

Routledge, 2005.

61 POLANYI, K. The great transformation: the political and economic origins of our

time. Boston: Beacon Press, 2001.

62 HOVENKAMP, H. Enterprise and American law, 1836-1937. Harvard University

Press, 1991.

Teorias Contemporâneas do Direito 125

seu conceito, por exemplo, da propriedade intelectual. Essas reconstru-

ções conceituais tinham, como pano de fundo, uma nova ideologia políti-

ca e sua absorção jurídica se deu pela infusão da noção de igualdade no

conceito estruturante de liberdade individual: não apenas vontade livre,

mas condições (equilibradas) para o efetivo livre exercício da vontade. Ou

seja, na virada daquele século, o direito foi “reconfigurado”.

Encarar os desafios trazidos pelo ambiente digital como o sim-

ples surgimento de um novo ramo do direito (o direito digital) e polemi-

zar sobre sua sujeição a regulação específica não parece fazer jus ao tipo

de transformação conceitual em jogo. Aparentemente, na virada para o

século XXI, a revolução econômica e social trazida pela tecnologia da

informação submete o direito a uma nova reconfiguração, ao afetar seu

núcleo em meio à crise de uma visão de sua própria identidade. O pro-

blema não se reduz a novas metáforas conceituais para o ambiente digital,

mas envolve a metaforização de tudo por um mundo ainda demasiado

abstrato para nossa natureza corpórea, onde tudo parece ser apreendido

metaforicamente.

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Teorias Contemporâneas do Direito 129

CONSTITUCIONALISMO SOCIAL: NOVE

VARIAÇÕES SOBRE O TEMA PROPOSTO

POR DAVID SCIULLI1

Gunther Teubner2

Sumário: 1. Exposição: Sociologia Constitucional Como Crítica do Constitu-

cionalismo Tradicional. 2. Tema: David Sciulli. 3. Primeiro Conjunto de

Variações: Extensões. 4. Segundo Conjunto de Variações: A Unidade de uma

Constituição Global. 5. Referências.

1 EXPOSIÇÃO: SOCIOLOGIA CONSTITUCIONAL COMO

CRÍTICA DO CONSTITUCIONALISMO TRADICIONAL

“A Sociologia Constitucional é a novidade do momento”3. Uma

das razões pela qual essa linha de pesquisa abala os sólidos alicerces de

teóricos constitucionais é que ela submete as constituições, normalmente

vistas como o domínio exclusivo de advogados constitucionalistas, cien-

tistas políticos e filósofos políticos, aos métodos rigorosos da pesquisa

1 Traduzido do alemão por Chris Thornhill. Gostaria também de agradecer-lhe por seus

preciosos comentários. Traduzido do inglês por Thalia Cerqueira. (In: BLOKKER,

Paul; THORNHILL, Chris. Constitucionalismo Sociológico. Cambridge: Cambridge

University Press, 2016)

2 Graduado em Ciências Jurídicas em Göttingen e Tübingen, Mestre por Berkeley,

Doutor e Livre-Docente por Tübingen. Professor Emérito na J. W. Goethe Universität

Frankfurt am Main, onde foi o Principal Investigator no centro de excelência “Norma-

tive Ordnungen”. Professor visitante em Berkeley, Stanford, Ann Arbor, Leiden, To-

ronto, Den Haag, Maastricht, Shanghai e Peking. Doutor Honoris Causa pelas Uni-

versidades de Lucerna, Neapel, Tiflis, Macerata e Lund.

3 Declaração de Grahame THOMPSON (2015), em uma longa discussão sobre as mo-

nografias relevantes mais recentes.

Gunther Teubner 130

social histórico-empírica (THORNHILL, 2011), ou as expõe à dura luz das

respeitadas teorias sociais (LUHMANN, 1965; 1990; VERSCHRAEGEN,

2013). O aspecto mais provocativo da sociologia constitucional, no entanto,

é a afirmação de que ela é simplesmente anacrônica, ao restringir a gama

de fenômenos que vemos como essencialmente constitucionais às consti-

tuições dos Estados-nação, conforme continua a ser o caso entre os tradi-

cionais defensores da pesquisa constitucional4. Em vez disso, a sociologia

constitucional reivindica a máxima: Ubi societas, ibi constitutio – as for-

mações sociais desenvolvem-se onde está a sociedade, sejam estas siste-

mas funcionais, organizações formais ou regimes transnacionais – essas

formações dão origem a suas próprias constituições, que contestam a

alegação das constituições de Estado para assumir o monopólio de toda a

constitucionalidade. Thornhill (2011a, p. 212) descreve essa tendência da

sociologia constitucional com base nos seguintes termos:

Em contratese à doutrina constitucional, que afirma que a constitui-

ção deve categoricamente estar relacionada ao Estado, essa doutrina

estabelece uma teoria do pluralismo transconstitucional. A partir des-

sa perspectiva, todos os sistemas de comunicação estão dissociados

dos centros jurídicos /políticos de controle, produzindo, mais ou me-

nos espontaneamente, uma microestrutura internamente autorregula-

mentadora, que ultrapassa as fronteiras geográficas. As fronteiras re-

gionais, ou fronteiras dos Estados-nação, são substituídas por frontei-

ras funcionais, como pontos de referência para a base constitucional

e a eficácia constitucional.

O pluralismo transconstitucional, consequentemente, adquire uma

dimensão central na sociologia constitucional. O pluralismo trans-

constitucional baseia-se em uma crítica da reflexão constitucional

tradicional em três níveis (FEBBRAJO, 2016). No primeiro, faz-se a

crítica das interpretações jurídicas centristas do pensamento tradi-

cional, o que restringe as constituições a normas jurídicas simples de

ordem superior. Em contrapartida, afirma-se a prioridade da auto-

constitucionalização social (KJAER, 2014, p. 122 e ss.). No segundo

nível, volta-se contra o estado-centrismo da análise tradicional, que

somente identifica constituições no setor “público”. Alega-se que as

constituições setoriais podem ser igualmente encontradas e que, de

fato, assumem crescente importância em empreendimentos econômi-

cos, mercados, universidades particulares, fundações, empresas de

4 O foco exclusivo em constituições de Estado no direito constitucional é enfaticamente

defendido por LOUGHLIN (2010, p. 64); GRIMM (2005); e, em ciência política, por

NEVES (2013).

Teorias Contemporâneas do Direito 131

meios de comunicação, intermediários na internet e outras institui-

ções “privadas” (VESTING, 2015, p. 99 e ss., 114 e ss.). Por fim, em

sua crítica ao nacionalismo metodológico, oferece uma visão clara do

processo de constitucionalização global e identifica fenômenos consti-

tucionais em regimes transnacionais, tanto no setor público quanto no

privado. (VIELLECHNER, 2012, p. 612 e ss.)

Por que o constitucionalismo clássico não enxerga as constitui-

ções para além do Estado? A sociologia constitucional poderia, de fato,

explicar essa deficiência com base em fundamentos históricos. Após o

declínio do feudalismo, considerou-se que as instituições intermediárias

careciam de legitimidade, sendo a constituição exclusivamente estabele-

cida na relação entre cidadãos e Estado, enquanto o setor privado era

visto como uma esfera de atividades individuais, que precisava ser prote-

gida pelos direitos humanos, mas não constitucionalizada segundo seus

próprios termos. Um direito privado que abrangesse as relações horizon-

tais entre os atores individuais já era suficiente. No entanto, análises his-

tórico-sociológicas demonstram como estava inadequada essa percepção.

A revolução organizacional e a crescente diferenciação funcional das

sociedades modernas, que tanto resultou no crescimento de instituições

não estatais autônomas em grande escala – as novas instituições interme-

diárias –, têm suscitado seus próprios e problemas constitucionais dife-

renciados, que não podem ser captados por meio da análise de constitui-

ções de Estado (KJAER, 2015; 2014, p. 17 e ss.; FEMIA, 2011). Além

disso, as tendências recentes no sentido da transnacionalização agravaram

os problemas constitucionais em diferentes setores da sociedade. Por

conta disso, a constitucionalização agora claramente precisa ser analisada

como um processo que ocorre para além do Estado, enquanto a constitu-

cionalização da sociedade transnacional precisa ser vista como um fenô-

meno característico da sociedade contemporânea. Enquanto o constitucio-

nalismo tradicional manteve-se limitado a Estados-nações, as organiza-

ções e os regimes transnacionais se autoestabeleceram enquanto institui-

ções jurídico-políticas. Por exemplo, a Organização Mundial do Comér-

cio, o ICANN (órgão mundial responsável por estabelecer regras quanto

ao uso da Internet), os regimes transnacionais híbridos, o Global Health e

a Lex Mercatoria ilustram de maneira impressionante como os regimes

transnacionais começaram a desenvolver estruturas constitucionais pró-

prias (CASS, 2005; RENNER, 2011; ELLIS, 2013; WIELSCH, 2013;

KRAJEWSKA, 2013).

A constitucionalização para além do Estado-nação pode ser ob-

servada como um processo evolutivo que conduz a duas direções bem

Gunther Teubner 132

distintas: (1) as constituições evoluem em processos políticos transnacio-

nais fora do Estado-nação; (2) ao mesmo tempo, as constituições evoluem

,

fora da política internacional, em setores “privados” da sociedade global.

Quando aborda esses problemas, a sociologia precisa se distanciar da

ótica estreita do direito constitucional e da ciência política, que anterior-

mente restringiu os fenômenos constitucionais ao Estado-nação, sendo

preciso concentrar-se nas diversas subconstituições que existem na socie-

dade moderna. Essa visão confronta a sociologia constitucional com três

desafios diferentes: (1) analisar de forma empírica os processos contínuos

de constitucionalização para além do Estado-nação; (2) desenvolver uma

teoria para o transconstitucionalismo social; (3) identificar os problemas

constitucionais no âmago de diferentes setores sociais e criar alternativas

de soluções estruturais que, em seguida, permitam ao direito constitucio-

nal reinterpretar esses problemas em sua própria língua e desenvolver

normas e princípios constitucionais (TEUBNER, 2012; 2013).

Qual, no entanto, é o elemento particularmente social no consti-

tucionalismo social? De que forma as constituições são criadas por forças

caracteristicamente sociais? Como as constituições constroem a ordem

normativa dos processos genericamente sociais? Essas perguntas são

atualmente alvo de controvérsia, para a qual muitas pessoas contribuem, e

têm dado origem a uma grande incerteza sobre os temas relacionados a

constituições não estatais, sua origem, sua legitimação, seu alcance e suas

estruturas internas. Em vez de tomar partido nessa controvérsia, pode ser

mais proveitoso interpretá-la, não como um conflito entre posicionamen-

tos incompatíveis, mas como um tema com diversas variações. Ao abor-

dá-la dessa forma, podemos observar os diferentes posicionamentos con-

troversos como tentativas elaboradas de divulgar o potencial do tema, em

seus desdobramentos mais ou menos produtivos. A seguir, colocarei as

seguintes indagações-chave às inúmeras variações sobre o tema básico:

1. Qual o “princípio constituinte” característico de cada varia-

ção em particular?

2. Quais problemas tornam-se evidentes em seu “desdobra-

mento”?

3. Quais são os seus “temas” de maior valor?

Desta forma, em primeiro lugar, apresentarei brevemente o te-

ma do constitucionalismo social, originalmente escrito por David Sciulli.

Em seguida, apresentarei seis variações do tema proposto por Sciulli, em

dois conjuntos distintos de variações. No primeiro desses conjuntos, a

constitucionalização é percebida como a expansão de uma única raciona-

lidade em todas as esferas da sociedade. No segundo, ainda pode-se per-

Teorias Contemporâneas do Direito 133

ceber o conceito da unidade da constituição, apesar do pluralismo essen-

cial do constitucionalismo social. No movimento final, outras três varia-

ções repetirão e desdobrarão ainda mais os conceitos mais importantes,

em retomada ao tema original.

2 TEMA: DAVID SCIULLI

O feito de haver proposto o constitucionalismo social como te-

ma de pesquisa deve-se ao sociólogo norte-americano, David Sciulli

(1988; 1992; 2001). Na verdade, houve conceitos precursores dessa abor-

dagem, que abrangem, por exemplo, as concepções da constituição eco-

nômica propostas por Hugo Sinzheimer (1976 [1927]) e Franz Böhm

(1966); a teoria do governo privado, proposta por Philip Selznick (1969)

e o conceito de constituição social, por Reinhart Koselleck (2006). No

entanto, Sciulli foi o primeiro a desenvolver uma teoria aprimorada do

constitucionalismo social. Partindo da narrativa do dilema da racionaliza-

ção na sociedade moderna, de Max Weber, este tentou identificar as for-

ças existentes que poderiam contrariar a tendência evolutiva em larga

escala, o que, pensou, estaria promovendo um aumento do autoritarismo

na sociedade. Segundo Sciulli, a única dinâmica social que havia efeti-

vamente combatido esse movimento no passado, e que talvez pudesse

obstruí-la no futuro, deveria ser encontrada nas instituições do “constitu-

cionalismo social”. Ao desenvolver essa ideia, ele atribuiu decisiva im-

portância à institucionalização social das “formações colegiadas”, o que

poderia ser observado nas formas de organização específicas às profis-

sões e outras instituições deliberativas produtoras de normas.

3 PRIMEIRO CONJUNTO DE VARIAÇÕES: EXTENSÕES

Variação I: O braço longo da constituição do Estado

Algumas teorias tentam interpretar as constituições de diversos

setores sociais como expansões da Constituição do Estado, e classificam

as normas da Constituição do Estado relativas a esses setores sociais co-

mo instituições jurídicas autônomas. Essas teorias estão muito claramente

localizadas no âmbito do direito constitucional tradicional. Por exemplo,

Rupert Scholz (1971; 1978) argumentou que a Constituição da Alemanha

Ocidental, mais especificamente a seção sobre direitos básicos e as dispo-

Gunther Teubner 134

sições que regulam as competências legislativas, continha elementos de

uma constituição econômica, elementos de uma constituição cultural,

uma constituição dos meios de comunicação, uma constituição das forças

armadas e uma constituição ambiental, que impuseram uma ordem nor-

mativa, definida pelo Estado, na estrutura básica existente nessas subesfe-

ras da sociedade. Sob essa perspectiva, os direitos básicos garantidos pelo

Estado atuaram como princípios jurídicos objetivos, que “organizavam”

as subesferas distintas da sociedade. Por conta disso e como resultado, o

direito constitucional é responsável por trabalhar esses elementos para

que se tornem uma ordem sistemática coerente de subconstituições sociais,

organizadas pelo Estado, e por extrair novas normas constitucionais dessa

ordem.

Algumas teorias vão mais longe quando tentam estender a cons-

tituição do Estado para além da política, e reinterpretar essa Constituição

como a constituição da sociedade como um todo. Por exemplo, Karl-

-Heinz Ladeur (2009) afirma que, mesmo durante os primórdios do cons-

titucionalismo, a constituição política também era uma constituição da

sociedade como um todo. Ulrich Preuss faz afirmações semelhantes,

embora um pouco mais cautelosas. Segundo Preuss, os princípios da

constituição política, especialmente os direitos básicos, não são apenas

formulados para regular o processo de formação da vontade política. Pelo

contrário, ele afirma que “eles incorporam princípios normativos, aos

quais a própria sociedade está sujeita, e que devem permear todas as

relações sociais” (PREUSS, 2012, p. 234).

Outros autores que tentam identificar a origem das constituições

sociais, que emergem no domínio transnacional e nas constituições dos

Estados, encontram problemas maiores. Alguns autores tentam explicar a

existência inegável da constitucionalidade transnacional, observando-a

como uma expansão das constituições do Estado para além das fronteiras

nacionais. Esses autores sugerem que, onde os problemas constitucionais

parecem externos aos Estados-nação, como por exemplo, nos direitos

básicos na internet ou no Estado de direito na arbitragem privada transna-

cional, eles podem ser resolvidos através da “expansão” dos princípios

jurídicos embutidos nos Estados-nação em espaços transnacionais (vide,

por exemplo, LADEUR; VIELLECHNER, 2008). Argumentos semelhan-

tes foram desenvolvidos por Marcelo Neves (2013), em seu conceito

proposto de “transconstitucionalismo”. Ele admite, por um lado, que os

problemas constitucionais aparecem, de fato, no espaço transnacional. No

entanto, ele insiste que as soluções para esses problemas são fornecidas

não pelas constituições de instituições transnacionais, mas pelas consti-

Teorias Contemporâneas do Direito 135

tuições dos Estados-nação, que, segundo ele, “entrelaçam-se” aos orga-

nismos transnacionais5.

Todas as diferentes versões desse estatismo constitucional, que

se amplia para abarcar as constituições sociais, são culpadas por subesti-

mar sistematicamente a capacidade autoconstitucionalizante das institui-

ções sociais. A autoconstitucionalização das instituições sociais

,

pode ser

explicada teoricamente pelo fato de que a diferenciação funcional da so-

ciedade não pode ser atribuída a uma decisão política básica. É, pelo con-

trário, um processo evolutivo complicado, no qual as distinções funda-

mentais principais entre sistemas diferentes gradualmente se tornam visí-

veis, enquanto instituições especializadas são formadas por sua própria

lógica interna. Nesse processo, os sistemas funcionais “constituem” a si

mesmos, pois determinam a sua própria identidade através da complexa

semântica de autoexplicação, reflexão e autonomia (LUHMANN, 2012,

cap. 4, VIII). Processos semelhantes de diferenciação ocorrem em orga-

nizações formais e regimes transnacionais.

Há, no entanto, um aspecto da variação estatal no constituciona-

lismo social que tem valor permanente. As constituições do Estado apre-

sentam o principal modelo histórico para outros processos de constitucio-

nalização. As constituições do Estado produziram um rico reservatório de

instituições constitucionais – a separação de poderes, o estado de direito,

a democracia e os direitos básicos – com os quais outras constituições

sociais parciais podem contar no curso de sua generalização e re-espe-

cificação (PRANDINI, 2010, p. 311 e ss.). As constituições do Estado

servem de modelo, mais particularmente, devido a um feito paradoxal:

elas têm conseguido limitar de forma eficaz as totalizações do poder polí-

tico, que são componentes imanentes dos processos de poder, por meio

do próprio poder político. O uso dos direitos humanos como proteções

contra o poder do Estado é um exemplo clássico disso. A questão de sa-

bermos se essa autolimitação também pode ocorrer em outros sistemas

parciais da sociedade, que também apresentam tendências totalizantes

semelhantes, é uma das questões mais prementes do constitucionalismo

social (LINDAHL, 2013, p. 725 e ss.).

5 Ainda não está claro, em ambas as versões, como, precisamente, essa misteriosa

expansão deve ocorrer e, especialmente, quais instituições decidem sobre essa expan-

são, o que decerto não é, normalmente, a expansão de um único princípio constitucio-

nal, mas uma seleção entre uma série de alternativas. Se for tomada tal decisão, não

apenas pelos tribunais constitucionais dos Estados-nação, mas também pelos tribunais

internacionais e tribunais de arbitragem, ambas as versões terão que admitir que o di-

reito constitucional transnacional evolui de forma independente dos Estados-nação.

Gunther Teubner 136

Variação II: A expansão do político

Há algumas análises sociológicas que identificam a separação

entre as constituições de Estado e as constituições sociais de maneira

empírica. Essas análises abandonam a tentativa duvidosa de se resgatar o

monopólio da constituição do Estado através da interpretação de fenôme-

nos constitucionais da sociedade como uma “expansão” mais ou menos

misteriosa da constituição do Estado. Em vez disso, elas explicam o apa-

recimento de constituições sociais por meio da dissociação clara entre a

política e o Estado, alegando que, através do processo de globalização, o

sistema político se expandiu para além do domínio do Estado, tanto no

campo da política internacional quanto em outras esferas da sociedade

mundial. De modo correspondente, Kjaer (2014, p. 83 e ss., 97) observa a

formação de um “tipo transnacional específico de política que, em sua

orientação, sua configuração de autointerpretativa e institucional, é

substancialmente diferente da forma de política que tende a dominar em

contextos nacionais”. De acordo com Thornhill (2010; 2016, p. 103 e ss.)

é possível identificar, de forma empírica, microconstituições na estrutura

pluralista da sociedade mundial, que formalizam processos de poder den-

tro da sociedade, e que, na realidade, não são constituições de Estados,

mas constituições do poder político na sociedade. Essas constituições

ampliam a receptividade das diferentes esferas da sociedade para a inclu-

são no poder político (vide também PRIBÁN, 2015, p. 47 e ss.). As ideias

de Thornhill a esse respeito podem ser expressas na máxima: Ubi potestas,

ibi constitutio. Onde a comunicação não ocorre em meio ao poder, a socie-

dade não precisa de uma constituição. Onde a comunicação ocorre em

meio ao poder, a sociedade invariavelmente precisa de uma constituição.

O problema com essa afirmação, no entanto, é que conduz a um

posicionamento redutivo, em que as constituições sociais são identifica-

das somente em processos de poder político. É uma questão de debater-

mos se, assim como Thornhill, devemos interpretar a politização da socie-

dade, que, sem dúvida, é evidente em processos de globalização, como

uma extensão do sistema político, em que os processos de poder são libe-

rados de sua estreita relação com o Estado e a política institucionalizada,

sendo conduzidos em muitas localidades da sociedade mundial, inclusive

nos sistemas parciais da sociedade. Pode ser mais preciso manter um

conceito bem definido do sistema político como um sistema que constrói

o poder político para a produção de decisões coletivamente vinculativas,

não só em Estados-nação, mas também na política internacional (LUH-

MANN, 1998, p. 375 e ss.). Paralelamente, os processos “políticos”, com

um caráter tanto institucional quanto funcionalmente distinto, também

acontecem em outros sistemas parciais que, por sua vez, estão sujeitos a

Teorias Contemporâneas do Direito 137

um processo de constitucionalização à parte. Essa constitucionalização,

no entanto, não produz normas para processos de poder somente. Pelo

contrário, ela também cria normas para a comunicação específica do sis-

tema dentro dos sistemas parciais. A divergência sobre politização deve

ser vista como mais do que uma questão terminológica. Não precisamos,

como Thornhill, postular que o sistema político em expansão encontrou

uma nova unidade, em que a comunicação ocorre através do poder. Em

vez disso, podemos identificar muitas formas variadas, autônomas, de

política reflexiva em contextos diferentes, que exigem uma constituciona-

lização própria. De fato, conforme Thornhill (2016, p. 100), com razão,

insiste, elas têm um caráter “categoricamente público”, mas a sua dimen-

são pública não está necessariamente ligada à política do poder. Cada vez

mais, em contextos transnacionais, o direito privado, mesmo o ordena-

mento privado por atores não estatais, assume um caráter categoricamen-

te público (MUIR WATT 2015; KINGSBURY, 2009; WAI, 2008). A

“política” dos bancos centrais, das universidades e de outras organizações

científicas, dos tribunais constitucionais, ou de profissões de autorregula-

ção, não pode ser entendida simplesmente como processos parciais dentro

da interpretação do poder político para a produção de decisões coletiva-

mente vinculativas. Pelo contrário, essa política deve ser entendida como

uma modalidade de política reflexiva, no âmbito das instituições sociais,

que toma decisões, em suas próprias formas de comunicação, a respeito

de sua função pública e suas realizações em prol de outras esferas parciais

da sociedade.

No entanto, há um tema na variação de Thornhill sobre o assun-

to ao qual deverá ser dado prosseguimento e desenvolvimento mais adi-

ante. A função das constituições, para Thornhill, é a “formalização” do

poder enquanto meio de comunicação. Essa formalização é a “condição

autoproduzida em prol da autonomia positiva e diferenciada de poder”

(THORNHILL, 2010, p. 18). Esse é um pensamento verdadeiramente

significativo, que agora, no entanto, exige uma maior generalização.

Constituições formalizam os meios de comunicação de variados tipos

(STEINHAUER, 2015, p. 41 e ss.). Não é apenas o meio do poder na

política que está constitucionalmente formalizado: os meios do dinheiro,

do conhecimento, da lei e das informações estão todos igualmente forma-

lizados em suas próprias esferas de ação particulares, por meio de uma

série de processos

,

constitucionalizantes singulares. Uma constituição

econômica é restrita à formulação de normas fundamentais apenas duran-

te a abordagem de fenômenos do poder econômico, ou ela também não

produz normas de comunicação monetária como tal, independentemente

de haver ou não a tradução em comunicações de poder, como, por exem-

Gunther Teubner 138

plo, em hierarquias corporativas ou monopólios de mercado? O que a

constituição da ciência formaliza? O poder luta no âmbito das instituições

científicas ou das operações epistêmicas? E a constituição da religião? A

constituição da internet? A resposta a essas perguntas é: constituições não

formalizam somente processos de poder. Elas também formalizam pro-

cessos de comunicação que não se relacionam com o poder, que são rea-

lizados através de outros meios, específicos de outros sistemas.

Variação III: Escolha racional em toda parte

Em contrapartida às variações discutidas acima, as teorias cons-

titucionais econômicas desenvolvem uma versão mais radical do consti-

tucionalismo social. Elas definitivamente dissociam as constituições do

Estado, da política, do poder, ou da política internacional, e as veem co-

mo ordens sociais autônomas, especialmente no caso das organizações

econômicas e mercados. Na versão mais restrita dessa teoria, o conceito

de constituição é aplicado às normas fundamentais de ação genuinamente

econômica. Esse é o caso da narrativa ordoliberal da constituição econô-

mica global, que combate o poder econômico, a fim de proteger a livre

concorrência enquanto imperativo constitucional (FIKENTSCHER; IM-

MENGA, 1995, p. 35 e ss.) Os expoentes do “Novo constitucionalismo”,

que analisam de forma crítica as instituições do Consenso de Washington,

esboçam um conceito semelhante da constituição, embora com uma ênfa-

se ideológica diferente (SCHNEIDERMAN, 2014; ANDERSON, 2013).

A versão mais ampla dessa teoria identifica constituições em todas as

formações de grupos sociais, inclusive nas de caráter não econômico,

alegando que todos cumprem a lógica econômica da escolha racional

(BUCHANAN, 1991; VANBERG, 2005).

Assim como a expansão do sistema político, que criticamos an-

teriormente, esses conceitos também refletem a expansão imperialista de

um sistema social – dessa vez, do sistema econômico – o que também

requer a devida análise. Não há dúvidas de que qualquer tentativa de su-

bordinar as estruturas internas da religião, das artes ou dos meios de in-

formação aos princípios de uma constituição econômica, ou de se julgar

essas estruturas exclusivamente com base em princípios de escolha racio-

nal, teria infligido uma violência intolerável tanto na racionalidade de

cada sistema quanto na orientação básica da sociedade como um todo.

No entanto, um conceito precioso também pode ser discernido

em teorias econômicas da constituição. Esse pode ser encontrado em sua

insistência de que as constituições são manifestas, não somente em confi-

gurações jurídico-políticas, mas também na economia e, de fato, em todas

Teorias Contemporâneas do Direito 139

as instituições sociais. Vale também salientar a forte ênfase dada por

essas teorias à independência das constituições sociais do Estado, de mo-

do que a auto-organização dos setores parciais da sociedade culmina com

a sua autoconstitucionalização.

Variação IV: Summum ius

As variações anteriores atribuíam as constituições sociais à ex-

pansão do sistema político ou do sistema econômico. No entanto, uma

outra variação as atribui à expansão do ordenamento jurídico, ou, de forma

mais genérica, da esfera normativo-institucional. Essa variação deriva de

uma definição das instituições como conjuntos de normas, e identifica as

“constituições setoriais” sociais em situações em que os ordenamentos

jurídicos com base não estatal começam a institucionalizar normas de ordem

superior (PETERS et al., 2009, p. 211 e ss.). Tal proposição é elucidada

pelo sociólogo do direito, Alberto Febbrajo (2016, p. 84), que afirma:

a máxima ubi Estado, ibi constituição tende gradualmente a ser subs-

tituída por uma institucionalismo radical, com base na máxima ubi

instituição, ibi constituição, que ignora explicitamente o Estado e a

centralidade da sua dimensão política.

Essas teorias perpetuam o legado do institucionalismo, que atri-

buiu um caráter jurídico às normas das instituições sociais (ROMANO,

1918; HAURIOU, 1986 [1933]), e reformulam essa teoria ao nível da

normatividade constitucional. Essa perspectiva institucionalista também é

implantada por especialistas em direito internacional, que descrevem o

surgimento de normas jurídicas de maior classificação nas organizações

internacionais e em “regimes autônomos” como uma forma de pluralismo

constitucional além do Estado-nação (WALKER, 2014). Ao fazê-lo, eles

enfatizam, com razão, a qualidade jurídico-normativa absolutamente es-

sencial das constituições.

As realizações do institucionalismo ao estabelecer, em contra-

partida à abordagem estreita do nacionalismo metodológico, o caráter

jurídico distintivo do pluralismo constitucional transnacional, são consi-

deráveis. No entanto, essa abordagem também não deixa de ser afetada

por tendências reducionistas, embora de um tipo completamente diferen-

te. Um perigo peculiar na abordagem institucionalista é que ela restringe

sua perspectiva, e não formalisticamente, às normas jurídicas, tanto a

normas centradas em torno do Estado quanto a normas do ordenamento

privado, e, como resultado, deixa de abordar as dinâmicas sociais que

Gunther Teubner 140

impelem a constitucionalização da sociedade. Até mesmo as constituições

dos Estados não podem ser adequadamente compreendidas se, assim como

muitos advogados constitucionais, na tradição Kelseniana (KELSEN, 1978

[1934]: 221 ff.), nós as abordarmos apenas como conjuntos de normas

jurídicas e, ao fazê-lo, deixarmos de levar em conta a dinâmica constitu-

cional do processo político. O mesmo pode ser dito, de forma análoga,

das constituições sociais, em cuja análise não devemos, igualmente, ne-

gligenciar o fato de que elas são baseadas principalmente na autoconsti-

tucionalização dos sistemas sociais e, de forma secundária, apenas em

interpretações normativo-jurídicas. Uma abordagem institucionalista que

somente identifica o constitucionalismo social com as normas jurídicas,

que regulam diferentes esferas da sociedade, reduz as constituições a

reles hierarquias de normas. O que realmente importa é a observação da

conexão distintiva que emerge entre as hierarquias das normas do direito

e dos processos de reflexão nos sistemas sociais (TEUBNER, 2012,

102 ff.). Os princípios constitucionais relevantes, que são mais verdadei-

ramente interessantes, não podem ser compreendidos simplesmente como

normas jurídicas hierarquicamente superiores de uma instituição. Em vez

disso, eles precisam ser compreendidos como os resultados de conflitos

constitucionais da sociedade, cuja juridificação somente ocorre posterior-

mente.

No entanto, o institucionalismo cria uma perspectiva valiosa, na

qual podemos identificar com maior precisão a ligação entre um sistema

social particular e o direito. Isso ocorre porque as instituições construídas

como conjuntos de normas tornam possível às normas sociais fundamen-

tais e às normas do direito constitucional assumirem uma proximidade, e

elas nos permitem interpretar o processo de constitucionalização como

um processo de “tradução” bidirecional, isto é, mais precisamente, como

uma dinâmica coevolutiva entre sistemas sociais constituídos e o direito

constitucional (TEUBNER, 2012, 110 ff.).

O princípio composicional que fundamenta todas essas varia-

ções é a ideia, com diferenças caso a caso, de que uma única racionalida-

de social se expande em todas as esferas da sociedade. É a tentativa de se

encontrar um princípio unificador da ordem na multiplicidade inquietante

das constituições sociais, seja através da expansão do sistema político, do

sistema econômico

,

ou do ordenamento jurídico. No entanto, essas varia-

ções estão longe de esgotar o potencial do tema de Sciulli. Seu constitu-

cionalismo social destina-se especificamente a preservar e promover a

pluralidade das orientações “não racionais”, contra os padrões unidimen-

sionais da razão instrumental. Em última análise, as quatro variações

discutidas até agora simplesmente substituem o antigo monismo da cons-

Teorias Contemporâneas do Direito 141

tituição única do Estado por um novo monismo, centrado em uma única

racionalidade, que deve ser a base de todas as constituições sociais. Essas

variações sobre o tema, no entanto, não são capazes de reconhecer o fato

de que o papel das constituições sociais reside em sua capacidade de ins-

titucionalizar as racionalidades completamente heterogêneas e incompa-

tíveis uma ao lado da outra e, paralelamente, limitar suas tendências tota-

lizantes, com as quais elas se ameaçam mutuamente.

4 SEGUNDO CONJUNTO DE VARIAÇÕES: A UNIDADE

DE UMA CONSTITUIÇÃO GLOBAL

Variação V: A constituição holística da sociedade

As variações a seguir sobre o tema de Sciulli utilizam um prin-

cípio de composição diferente para explicar a constitucionalização da

sociedade: a unidade insolúvel da constituição. Esse princípio foi origi-

nalmente desenvolvido para os Estados-nação. As constituições nacionais

afirmam, de forma categórica, que elas subordinam todas as atividades do

Estado às suas exigências regulatórias (GRIMM, 2005). Walker (2010)

visualiza o caráter “holístico”, ou seja, o fato de que fazem essas exigên-

cias regulamentares abrangentes, como uma característica definidora das

constituições. Isso é justificado através da afirmação de que as constitui-

ções são caracterizadas por uma função integradora, ou seja, sua capacida-

de de estabelecer uma orientação comum para as diferentes formações de

grupos sociais, apesar dos conflitos entre eles (SMEND, 1928, cap. 7).

Alguns teóricos transferem essas ideias para as constituições

sociais, postulando a existência de uma constituição uniforme, não so-

mente para o Estado, mas também para a sociedade como um todo e, em

alguns casos, até mesmo para a sociedade global. O historiador Reinhart

Koselleck (2006, p. 369 e ss.), afirmou que a era do Estado-nação foi

definida historicamente pela existência não somente de uma constituição

para o Estado, mas de uma constituição mais abrangente para a socieda-

de, a qual, além das atividades políticas realizadas pelo Estado, também

submetia instituições econômicas, sociais e culturais às exigências do

direito constitucional. Os assuntos relacionados a questões sociais, à or-

ganização eclesiástica e às instituições econômicas ou financeiras, deixa-

ram de ser problemas a serem abordados através de meros atos legislati-

vos. Em vez disso, tiveram que ser vistos como problemas pertencentes a

uma genuína “constituição da sociedade”. Se transportada para o proces-

so de transnacionalização, essa interpretação implicaria que as empresas

Gunther Teubner 142

transnacionais são os atores mais importantes, cujas constituições fazem

parte de uma constituição global de toda a sociedade.

No direito internacional e na filosofia política, diferentes auto-

res afirmam que a constitucionalização do direito internacional, que atu-

almente pode ser observada, é capaz de criar uma ordem constitucional

cosmopolita, uma constituição uniforme para a sociedade mundial como

um todo (FASSBENDER, 2007, p. 281 e ss., HÖFFE, 2005). Esses teóri-

cos rejeitam como irrealista a ideia de que uma constituição uniforme

dessa natureza é estabelecida em um Estado global. No entanto, eles ve-

em a “comunidade internacional” como o principal ponto de referência

para um corpo emergente de direito constitucional global. Ao fazê-lo,

eles concebem a “comunidade internacional”, e não, como no direito

internacional tradicional, como uma mera comunidade de Estados sobe-

ranos, mas como um agregado de atores políticos e sociais e como uma

comunidade jurídica de indivíduos6.

É bastante óbvio que tais ideias a respeito de uma constituição

global abrangente são irremediavelmente idealistas, e recebem mais apoio

de esperanças piedosas do que de análises realistas (vide a crítica incisiva

em FISCHER-LESCANO, 2005, p. 247 e ss.). No entanto, esses exageros

cosmopolitas também contêm uma ideia principal preciosa: a da integra-

ção pela constituição. Claro, o constitucionalismo social não precisa ir à

procura, em vão, por uma constituição institucionalmente unificada de

sociedade global. No entanto, decerto que ele tem necessidade de abordar

questões relativas à integração ou à coordenação da pluralidade de diver-

sas ordens constitucionais. Se é certo que nos Estados-nação, ao lado de

suas funções constitutivas e limitativas, a função integradora das consti-

tuições teve importância decisiva, então a questão tem de ser abordada

quanto a se, precisamente na extrema fragmentação das constituições

transnacionais, ainda haveria instituições que pudessem desempenhar

essa função integrativa.

Variação VI: Constituição enquanto imaginário coletivo

Existem teorias que se concentram na função simbólica das

constituições, e não em sua realidade institucional. Em última análise,

tentam recuperar uma constituição indissoluvelmente unificada para toda

a sociedade. Confrontadas com a pluralidade inegável dos regimes jurídi-

cos públicos e privados, e com a impossibilidade de criar uma instituição

constitucional uniforme global para esses regimes, essas teorias se agar-

6 Uma análise detalhada das diferentes variáveis sobre a ideia de uma constituição

global cosmopolita é oferecida por Rasilla del MORAL (2011).

Teorias Contemporâneas do Direito 143

ram, no entanto, a ideia de unidade constitucional. No entanto, elas redu-

zem tal unidade à ideia de que ela somente existe enquanto mito fundador

de um coletivo, seja este uma nação ou a comunidade internacional. A

ideia é expressa na seguinte concepção: “Em sua dimensão simbólica, a

Constituição só pode assumir uma forma unitária quando estiver indisso-

luvelmente ligada a instituições como a linguagem, a comunicação social,

a cultura, o conhecimento comum, a memória cultural”, sendo “dependen-

te de um espaço simbolicamente preenchido, um conteúdo cultural”, que

permita à constituição consolidar, de modo normativo, uma identidade

coletiva que seja universal para diversos processos de fragmentação (VES-

TING, 2012, p. 95). Essa constituição unitária, que é meramente fictícia,

mas que impacta a sociedade de modo generalizado, pode ser conciliada

com uma pluralidade de “constituições sucessivas” reais, que estão institu-

cionalizadas em diversas esferas da sociedade, mas que constantemente

remetem ao mito fundador da constituição unitária.

É muito discutível se um conteúdo cultural dessa natureza pode

ser visto como uma Constituição em seu sentido estrito, se ele não assu-

mir uma forma institucional sólida. Porque na ausência de instituições

reais, que não somente simbolizam a unidade, mas também a produzem

em processos incessantes de tomada de decisão, a unidade da Constitui-

ção permanece, naturalmente, como mera ficção. Somente nas “constitui-

ções sucessivas”, assim denominadas por Vesting, das constituições frag-

mentadas de esferas particulares da sociedade, pode a relação mutuamente

constitutiva entre normas constitucionais e simbolizações de unidade tor-

nar-se realidade.

Duas coisas, no entanto, são importantes nessa teoria ficcional

da constituição. Por um lado, ela enfatiza, justamente, que as constitui-

ções não produzem somente o direito positivo e resolvem conflitos, mas

também criam uma identidade coletiva, por meio de um mito fundador.

As constituições são, na realidade, processos vivos, em que um sistema

social assume uma identidade, expressa de forma jurídica. A teoria ficci-

onal da Constituição coloca, com toda a razão, maior ênfase na função

,

simbólica da constituição, normalmente negligenciada por teorias consti-

tucionais “realistas”, que enfatizam suas funções constitutiva, limitante e

integradora. Por outro lado, essa teoria tem seu mérito porque constrói

um edifício conceitual de dois níveis para explicar fenômenos constitu-

cionais, que compreende uma constituição totalmente simbólica e uma

série de sucessivas Constituições institucionalizadas, que podem ser usa-

das em novas reflexões sobre essas questões. A única questão é: como?

Gunther Teubner 144

Movimento final: Unitas multiplex

Nesta seção final, vou colocar à prova mais três variações sobre

o tema proposto por Sciulli. Essas se destinam a repetir, reunir e desen-

volver ainda mais as ideias principais das variações anteriores, cujo méri-

to foi comprovado.

O mérito dos seguintes temas das variações acima parece dura-

douro:

– A ideia da formalização do poder como um meio de comu-

nicação: essa é a essência da constituição, um tema que re-

quer maior generalização;

– A ideia da função integradora das constituições: essa serve

de base para a tentativa de encontrar a unidade da constitui-

ção, a nível nacional e transnacional;

– A ideia da constituição como um mito fundador: essa reflete

a sua função simbólica, que se estende para além de sua

função constitutiva, limitativa e integradora;

– A ideia da interação entre diferentes níveis constitucionais:

essa estabelece uma relação entre a pluralidade e a unidade

da constituição;

– A ideia da autoconstitucionalização dos sistemas sociais:

reage, de modo crítico, à imposição geral das constituições

sociais pelo sistema político ou pelo ordenamento jurídico.

– O papel central da institucionalização: apenas as institui-

ções, como conjuntos de normas, estabelecem um contato

permanente, fundamental para a constituição, entre as nor-

mas judiciais e extrajudiciais;

– A ideia das constituições estaduais como modelo histórico:

desempenham um papel exemplar nas constituições sociais,

mais particularmente por conta de sua capacidade paradoxal

para a autolimitação.

Variação VII: Metaconstituição

As variações do segundo grupo salientaram, com razão, que é

precisamente o pluralismo constitucional que dá origem, tanto empírica

quanto normativamente, à questão da unidade constitucional. O pluralis-

mo corresponde apenas a uma série de constituições não relacionadas ou

ele, na verdade, de uma forma ou de outra, produz unidade constitucional,

de forma específica, para a sociedade global? As respostas existentes para

essa pergunta são insatisfatórias, enfraquecendo-se em posicionamentos

Teorias Contemporâneas do Direito 145

extremos. Um dos posicionamentos extremos nega as realidades da so-

ciedade global, declarando que as Nações Unidas constituem o núcleo de

uma constituição institucionalizada para a sociedade global. O outro po-

sicionamento extremo busca refúgio em mundos fictícios, reduzindo a

constituição global a um imaginário coletivo, um mito fundador. Em

contrapartida, o “transconstitucionalismo” teria potencial para formar

uma perspectiva, que é ao mesmo tempo realista e desafiadora na medida

aceitável. No entanto, em clara distinção do conceito homônimo proposto

por Neves (2013), esse posicionamento necessita combinar os quatro

elementos a seguir: (1) A constituição uniforme global, que é de fato

emergente, formada, no entanto, apenas como uma “metaconstituição”;

(2) Essa metaconstituição não impõe princípios constitucionais significa-

tivos, mas projeta regras processuais para a resolução de conflitos entre

constituições sociais parciais; (3) Mais importante, a metaconstituição

não é hierarquicamente constituída em uma instituição autônoma, que

resolve os conflitos a partir do posicionamento de uma terceira instância

que se situa acima das subconstituições em conflito. Em vez disso, resol-

ve esses conflitos de forma heterárquica, através das decisões dessas pró-

prias constituições parciais; (4) Essas decisões são realizadas tanto em

leis de cooperação e negociação ou regras para a resolução de conflitos

de leis, que são desenvolvidas no âmbito das constituições parciais. A

expressão “transconstitucionalismo” capta o duplo significado dessa si-

tuação com muita precisão. Ela transcende o particularismo inerente às

constituições parciais, mas, ao mesmo tempo, penetra as constituições

parciais, sem estabelecer um patamar institucional novo e distinto7.

Essas tendências rumo ao surgimento de uma constituição para

a resolução dos conflitos de leis podem ser empiricamente observadas na

famosa (e infame) “guerra de magistrados”, que articula os conflitos entre

as constituições dos Estados-nação e a constituição da UE como um “diá-

logo imparcial” entre o Tribunal de Justiça Europeu e os tribunais consti-

tucionais dos Estados-nação (vide, por exemplo, ARDEN, 2010). Nesses

casos, as decisões que resolvem conflitos são feitas em um dos tribunais

envolvidos. No entanto, os tribunais reagem uns aos outros e, assim como

no common law, adotam argumentos de outros tribunais (SHANY, 2007).

Tendências semelhantes são observáveis nos conflitos entre as normas

dos regimes transnacionais, mais obviamente no caso da OMC, que, em

sua jurisprudência relativa ao “livre comércio e saúde pública”, o livre

7 Na mesma linha, THORNHILL (2016, p. 101) fala de “comunicação transjudicial”,

em que os tribunais decidem sobre conflitos de normas transnacionais e assim produ-

zem uma estranha unitas multiplex do direito global.

Gunther Teubner 146

comércio e meio ambiente etc., desenvolveu uma jurisprudência autôno-

ma voltada aos conflitos de leis, que, visto de sua própria perspectiva,

absorve as exigências normativas de outros regimes (CASS, 2005, p. 197

e ss.).

Vista sob sua perspectiva histórica, uma metaconstituição trans-

nacional dessa natureza pode basear-se na tradição do direito internacio-

nal privado. Em situações paralelas, em que as ordens jurídicas nacionais

entram em conflito sem a presença de uma terceira instância, as ordens

jurídicas envolvidas vêm desenvolvendo um grande número de regras de

litígio para si mesmas. É, atualmente, objeto de intensa discussão se o

potencial do direito internacional privado pode ou não ser usado para

conflitos constitucionais e ser modificado para atender uma situação his-

tórica original (BOMHOFF, 2015; MICHAELS; PAUWELYN, 2011;

JOERGES, 2011). Por exemplo, Horatia Muir Watt (2015) rejeita todas

as tentativas de legitimação da ordem jurídica transnacional através do

recurso a uma constituição unificada. Em vez disso, defende:

as próprias interações como o ponto de partida para abordar ques-

tões de legitimidade. Isto significaria abdicar da decisão sobre a

questão de legitimidade, em outras palavras, filtrar de antemão os

processos e lidar com eles de forma retrospectiva e em termos relati-

vos. Essa ideia parece perfeitamente de acordo com a estrutura refle-

xiva instável do direito global. Ela sugere que a questão da legitimi-

dade surge em termos distintos, de acordo com o tipo de ação (cola-

borativa, de confronto, concomitante) que está sendo feita em relação

a outros ordenamentos jurídicos.

Ela deixa claro a este respeito que a constituição transnacional

de conflito de leis deve generalizar e re-especificar os métodos ‘heterár-

quicos’ do direito internacional privado, ou seja, devolver questões pre-

liminares, de características jurisprudenciais. É igualmente importante

reformular os dois princípios básicos e opostos do direito internacional

privado: o reconhecimento mútuo e a ordem pública, em prol da relação

entre constituições transnacionais. O princípio da fé pública ou do reco-

nhecimento mútuo não significa apenas que as constituições transnacio-

nais demonstram ter tolerância recíproca, conforme indica o princípio da

“tolerância constitucional” (KUMM, 2006, p. 528 e ss., p. 114 e ss.). Ele

também contém a demanda

,

adicional que as constituições precisam para

realizar a “capacidade de resposta constitucional” (VIELLECHNER,

2015), e desenvolver normas substantivas, que resolvem as exigências de

constituições em conflito através do estabelecimento de um compromisso.

Teorias Contemporâneas do Direito 147

Em contrapartida, a ordem pública nacional descreve os limites

para o reconhecimento de uma ordem jurídica estrangeira, que são atingi-

dos quando a norma estrangeira viola as normas fundamentais do direito

interno (FORDE, 1980). Ampliado para abarcar o contexto aqui descrito,

tal conceito significa que, em tais circunstâncias, uma constituição trans-

nacional deve recusar-se a reconhecer uma constituição transnacional

diferente (MUIR WATT, 2015).

Variação VIII: Nomos e Narrativa

Em contrapartida a esse significado tradicional da ordem públi-

ca, o conceito jurídico de ordem transnacional pública já foi estabelecido,

como um princípio de conflito de leis, que também pode ser usado no

contexto do pluralismo constitucional transnacional (RENNER, 2009;

2011, p. 88 e ss.). Ao contrário da ordem nacional pública, esse conceito

não se destina a proteger os fundamentos da ordem jurídica interna a

partir da intrusão estrangeira. A ordem pública transnacional lida com a

relação das constituições parciais para com a sociedade como um todo.

Cada uma das constituições envolvidas constrói uma ordem pública

transnacional a partir de sua própria perspectiva. Então, cada regime

transnacional torna-se responsável por tratar de duas afirmações contradi-

tórias ao mesmo tempo. Por um lado, conforme examinado na variação

anterior, cada constituição parcial é necessária para refletir a si mesma, de

forma autônoma e descentralizada, e tornar-se compatível com as normas

concorrentes de outras constituições parciais. Além disso, no entanto,

cada uma das constituições parciais envolvidas deve construir, sob sua

própria perspectiva, princípios de uma ordem pública transnacional que

englobe toda a sociedade, ou seja, princípios de uma metaconstituição

unificada, em relação aos quais ela avalia suas próprias normas.

Neste ponto, dois temas que eram percebidos nas diferentes Va-

riações propostas por Sciulli reaparecem e concorrem entre si: a unidade

da constituição e, ao mesmo tempo, a qualidade fictícia dessa mesma

unidade. O fato de que reivindicam pontos comuns de referência e um

horizonte (necessariamente abstrato) de significado, aos quais se referem

na produção de normas, significa que todas as constituições parciais po-

dem, de modo contrafactual, projetar a existência de uma metaconstitui-

ção unitária. Essa projeção torna visível a qualidade fictícia dessa unida-

de. Pois é preciso ser constantemente destacado que esse horizonte co-

mum não é dado de forma realista. Pelo contrário, é apenas uma ficção,

que cada constituição parcial produz através da sua própria visão de

mundo. O fato de que um núcleo comum de validade pode ser projetado

de modo contrafactual significa que é possível a diferentes textos consti-

Gunther Teubner 148

tucionais promover uma referência, com variação de texto a texto, a inter-

pretações do bem comum, que depois são refletidas nas normas concretas.

Vesting se aproxima dessas ideias ao descrever a relação entre

as constituições de subesferas da sociedade e a constituição da sociedade

como um todo. Ele afirma que as constituições parciais geram uma força

vinculativa que serve como padrão, mas que também vinculadas, em sua

autoconstrução por “ficções retrospectivas”, que produzem a “crença na

sua unidade”, ou a “unidade imaginária de uma constituição total”. Usan-

do as categorias influenciadas por Robert Cover, ele fala dessa constitui-

ção total, conforme segue: “A constituição contém um único nomos, mas

este gera diversas narrativas” (VESTING, 2015, p. 100; COVER, 1983).

Dessa forma, ele capta corretamente a difícil relação entre constituições

parciais institucionalizadas e a metaconstituição fictícia. Observa-se que

ele vê essa relação, não como uma estrutura de dois níveis, mas, sim,

como um processo de interpenetração recíproca em um nível diferente: o

nível das constituições parciais. No entanto, seu modelo requer duas cor-

reções. Por um lado, não é correto visualizar a ficção da unidade como a

projeção dos princípios constitucionais substanciais para a metaconstitui-

ção. A metaconstituição global não vai além dos procedimentos e princí-

pios de conflito, cooperação e confronto. Por outro lado, a ficção sobre a

unidade não é apenas produzida por narrativas. Ela também é produzida

por meio das práticas de tomada de decisões difíceis das próprias consti-

tuições parciais, ou seja, nos casos em que se tomam decisões sobre esses

conflitos. Em última análise, a proposição de Cover precisa ser interpre-

tada de forma diferente. Ela precisa ser compreendida de forma não a

indicar que um nomos se sustenta separadamente das muitas narrativas,

mas, sim, que uma relação distinta e autônoma se desenvolve entre o

nomos e a narrativa, tanto nas constituições parciais quanto na constitui-

ção de conflito de leis. Enquanto o nomos das constituições setoriais ex-

trai as diferentes narrativas contidas em diferentes expressões parciais da

normatividade substancial, a narrativa de integração pelo procedimento é

formada no nomos da constituição de conflito de leis. A máxima de Co-

ver – “Para cada constituição existe um épico, para cada decálogo, uma

escritura” (1983, p. 4) –, pode ser aplicada tanto à constituição global

fictícia quanto às constituições reais das subesferas da sociedade.

Variação IX: Autossubversão

A dupla máxima sobre nomos e narrativa enfatiza corretamente

que todo sistema social desenvolve suas próprias descrições, que formam

um contexto mais amplo para suas normas constitucionais. Nas autodes-

crições, os sistemas refletem tanto cognitiva quanto normativamente a

Teorias Contemporâneas do Direito 149

sua própria identidade. A esse respeito, mais uma vez, a constituição do

Estado é o modelo histórico principal. Assim como as teorias políticas

relacionadas com a realidade empírica do poder e os projetos normativos

da política ganham impacto nas constituições de Estado, outros domínios

sociais formulam narrativas autônomas, ou seja, as descrições da realida-

de e as interpretações normativas, que formam a base de sua constituição

distinta (KOSKENNIEMI, 2009, p. 12; DUNOFF, 2011, p. 150 e ss.).

No entanto, é apenas em uma variação final sobre o tema pro-

posto por Sciulli que podemos penetrar no núcleo interno da constituição.

Para fazer isso, como Thornhill (2010, p. 18), precisamos identificar a

“formalização do meio de comunicação” como o critério para a definição

da constitucionalização. Formalização de um meio – o que significa que

uma constituição é produzida não somente por processos cognitivos e

normativos, mas também por processos de reflexão do meio. Pois a for-

malização é obtida, não somente através da produção de normas jurídicas,

mas também, e mais importante, através do estabelecimento de uma rela-

ção autorreferencial, isto é, através da aplicação de um meio de comuni-

cação a si mesma. A forma é a “autorreferência articulada” (LUH-

MANN, 2012, cap. 1, IV). A reflexividade de um meio significa que as

operações voltadas à mídia são, elas mesmas, aplicadas ao meio. Na

política, isso significa a aplicação do poder ao poder; no direito, signifi-

ca a aplicação das normas legais às normas legais; na economia, signifi-

ca a aplicação das operações monetárias às operações monetárias; na

ciência, significa a aplicação de operações epistêmicas às operações

epistêmicas (LUHMANN, 2000, p. 64). As constituições são produzidas

por formalização.

A formalização tem consequências fundamentais, e também

tem, paradoxalmente, consequências autolimitadoras e até mesmo autos-

subversivas. E esse paradoxo da reflexividade do meio é o que é impor-

tante na modernidade contemporânea, quando as consequências

,

da teoria comportamental poderiam

ser frutíferos para que o tomador de decisão consiga atingir um grau de

otimização do direito voltado para a felicidade comum.

Alexandre da Maia, por sua vez, reconstrói a relação entre direito

e incerteza normativa através da relação entre imagens, subjetividade e

contingência do direito. O professor da UFPE refuta assim o projeto de

autofundamentação do direito com sua pressuposição de uma subjetividade

universal sem âncora social para afirmar que a fragmentação da subjetivi-

dade na sociedade moderna é sustentado pela projeção das imagens norma-

tivas dentro do direito. O autor consegue assim uma interessante ponte

entre a reprodução do cotidiano do direito, enquanto técnica, e a sociedade,

aqui certamente representada por uma teoria da cultura moderna onde exis-

te uma “flutuação” de contingências e imagens dessas contingências.

O ensaio de Gabriel Lacerda também está inserido no eixo em

que o direito enfrenta sua crise contemporânea de identidade. Contudo,

talvez seja mais correto considerar que a visão do autor seja menos uma

busca do que uma venda de sua alma para a tecnologia cibernética. A

visão de Gabriel Lacerda é uma profecia apocalíptica de um cenário em

que a democracia cede espaço para a cibernética. Neste admirável mundo

novo imaginado pelo ensaísta, haveria um estado cibernético de direito

com a transmutação da forma da regra jurídica de regras centradas em

liberdades subjetivas para regras centradas na obediência. A dimensão

estatal também mudaria dentro desse contexto. Ao se valer de técnicas de

controle cada vez mais aperfeiçoado, o Estado do mundo digital tenderia

a se tornar totalitarista.

Karl-Heinz Ladeur, por sua vez, fecha a discussão sobre a busca

do direito por sua alma em grande estilo, ao apresentar sua crítica aos

métodos jurídicos da ponderação e subsunção9. O ensaio do Professor

9 Veja também CAMPOS, Ricardo (Ed.). Crítica da ponderação: método constitucional

entre a dogmática jurídica e a teoria social. São Paulo: Saraiva, 2016.

Teorias Contemporâneas do Direito 17

Emérito de Sociologia do Direito da Universidade de Hamburgo explora

um possível novo método jurídico mais adequado para interpretarmos o

direito no contexto pluralista da nossa sociedade de redes. Ladeur nos

lembra que as operações jurídicas e os julgamentos normativos são decor-

rentes de um fluxo incessantes de analogias provenientes de acontecimen-

tos sociais que terminam por instituir a normatividade jurídica. Neste

contexto, normas constituídas juridicamente estão intrinsicamente rela-

cionados a comportamentos instituídos socialmente. Um processo de ma-

peamento identifica as novas construções surgidas a partir de uma codifi-

cação de situações a partir do conhecimento comum. Em seu eloquente

ensaio, Ladeur critica simultaneamente a técnica da ponderação e uma

visão monista do universo dos valores. Ao indicar como vias alternativas

a normatividade das redes de relacionamento e o pluralismo normativo,

Ladeur provoca uma reflexão profunda sobre os dois eixos de debates

deste volume e reafirma a essencialidade da teoria para a compreensão do

direito contemporâneo e de sua crise de identidade diante das incertezas

normativas.

Desejamos boas leituras e reflexões a todos!

Os coordenadores

Pedro Fortes / Ricardo Campos / Samuel Barbosa (Coords.) 18

Teorias Contemporâneas do Direito 19

O DIREITO MODERNO E A CRISE DO

CONHECIMENTO COMUM1

Thomas Vesting2

Sumário: 1. Exemplo: Direito Comercial e Práticas de Negócio. 2. O Contexto

Histórico-Jurídico. 3. Epistemologia Social. 4. Epistemologia Histórica. 5. O

Direito e seu Contexto Referencial de Práticas Instituídas. 6. O Conhecimento

Comum Acessado pela Experiência. 7. O Conhecimento dos Grupos. 8. Co-

nhecimento em Rede. 9. Referências.

1 EXEMPLO: DIREITO COMERCIAL E PRÁTICAS DE

NEGÓCIO

O direito moderno faz referência constante ao conhecimento

prático. Vamos tomar como exemplo o direito comercial. Assim como a

lex mercatoria medieval, formada a partir dos hábitos e costumes do co-

mércio marítimo, das práticas comerciais cotidianas das cidades e assim

por diante3, o direito comercial moderno apropria-se de uma série de prá-

ticas existentes entre os homens de negócio4. Desse modo, as leis comer-

ciais codificadas são, até hoje, intimamente ligadas às convenções comer-

ciais, a maior parte das quais não escritas. Há uma etiqueta comercial

1 Traduzido do inglês por Julia Nemirovsky.

2 Formado em Direito e Ciências Políticas pela Universidade de Tübingen. Doutor em

Direito pela Universidade de Bremen. Livre-docente pela Universidade de Hamburg.

Professor de Teoria do Direito, Teoria dos meios de comunicação e Direito público na

Goethe Universität Frankfurt am Main.

3 Ver BERMAN, Harold J. Law and Revolution. The formation of the western legal

tradition. Cambridge: Harvard, 1983. p. 340.

4 Ver BAUMBACH, Adolf; HOPT, Klaus J. Handelsgesetzbuch. 36. ed. München:

Beck, 2014, para. 7, 18.

Thomas Vesting 20

específica, além de formas de interação ou de usos, tal como o aperto de

mão como uma forma de concluir um negócio; há unidades de medida

específicas, como as referentes ao comércio de madeira; ou, ainda, a (ca-

da vez mais obsoleta) linguagem de sinais do pregão. Essa dependência

que o direito comercial positivo tem das formas convencionais de fazer

negócio costuma significar que essas convenções assumem a forma de

leis vinculantes caso sua prática e seu uso consistentes estejam aliados a

uma visão consensual de sua juridicidade. No código comercial alemão, a

dependência que o direito escrito tem das práticas comerciais instituídas

vem à tona sobretudo no parágrafo 346. Nele, lê-se: “Acerca do sentido e

efeito das ações ou omissões entre partes de um negócio, deve-se levar

em consideração os hábitos e costumes predominantes nas relações

comerciais”.

A primeira coisa que notamos nessa formulação – “deve-se le-

var em consideração os hábitos e costumes predominantes nas relações

comerciais” – é que ela se refere explicitamente a um conhecimento prá-

tico compartilhado entre as partes do negócio, e não a algo acumulado de

forma centralizada ou disponível de forma centralizada. Enquanto a lex

mercatoria medieval ainda disputava legitimidade com as leis e costumes

não escritos locais – por exemplo, a prática, comum na Inglaterra, de

prender cidadãos estrangeiros por dívidas de concidadãos, abolida pelo

Estatuto de Westminster, no século XIII5 – a codificação de amplos cam-

pos do direito comercial no século XIX deu origem a um grupo de nor-

mas escritas e não escritas voltadas especificamente para o comércio: a

direção de referência é a partir de um código para um conhecimento

local compartilhado, o que indica ainda um “sistema aberto” que se rees-

trutura constantemente, independentemente de qualquer intenção superior.

É verdade que os usos cotidianos também podem, por sua vez, tornar-se

leis, como no caso do comércio doméstico de madeira na Alemanha,

onde, desde 1950, um conjunto de normas escritas – conhecidas como

“Costume de Tegernsee” – está em vigor. Via de regra, entretanto, os

costumes aos quais o direito comercial se refere são marcados por uma

natureza não codificada, não escrita e, às vezes, inclusive, não formulada

verbalmente.

A estrutura do conjunto de leis comerciais escritas e não escritas

pode ainda ser exemplificada pela chamada “carta comercial de confir-

mação”, referente à celebração de contratos. Enquanto a noção do direito

contratual normalmente exige duas declarações de vontade compatíveis,

que juntas manifestam uma vontade vinculante (em alguns tipos de con-

5 Ver BERMAN, Law and Revolution, f. 1, p. 342.

Teorias Contemporâneas do Direito 21

trato, isso deve ser apresentado por escrito),

,

negativas

da diferenciação funcional tornam-se visíveis, especialmente na crise

ecológica atual (LUHMANN, 2012, cap. 4 XI). Se as consequências ne-

gativas da expansão do poder, do dinheiro, das tecnologias e do direito

devem ser limitadas, uma característica particular da reflexividade do

meio – sua capacidade de autossubversão (TEUBNER, 2009) – desempe-

nhará um papel central. É bastante incomum atribuir essa característica às

constituições, que geralmente são vistas como garantias solidamente es-

tabelecidas para estruturas duradouras e estabilidade de longo prazo. No

entanto, as constituições também contêm práticas subversivas que são

evidentes, já que também trabalham no sentido de sua própria autotrans-

cendência, fato que é negligenciado na teoria constitucional mais ortodo-

Gunther Teubner 150

xa. A reflexividade do meio, apresentada nas constituições, opera como

uma força subversiva interna com a qual um sistema social protesta con-

tra o seu encerramento. Esse é o verdadeiro sentido dos famosos “mo-

mentos constitucionais” (ACKERMAN, 2000): surgem quando um des-

dobramento potencialmente catastrófico começa e forças sociais trans-

formadoras são mobilizadas, atingindo tal intensidade que a “constituição

interna” de um sistema social transforma-se sob sua pressão8. Protestos da

reflexividade contra as tendências “naturais” em sistemas sociais a recur-

sividade, rotina, segurança, estabilidade, autoridade e tradição. Contra

tais tendências inerentes à automanutenção metódica, a reflexividade

infunde na ordem uma tendência à desordem, ao desvio, à variabilidade e

à mudança. A constituição protesta contra si mesma – em nome da socie-

dade, das pessoas e da natureza – mas o faz não de fora, mas de dentro, a

partir da constituição interna do próprio sistema social.

O paradoxo da reflexividade do meio é uma das mensagens

mais importantes da sociologia das constituições. Tal paradoxo faz uma

crítica à tendência de alguns teóricos, que também torna-se cada vez mais

proclamada nas relações transnacionais, a assumir que tanto a constitu-

cionalização política quanto a social pode ser conduzida, de modo exclu-

sivo, pelo direito e, em contrapartida, a marginalizar as contribuições da

sociedade. Estudos empíricos de processos transnacionais da constitucio-

nalização concluem que seus protagonistas não são mais atores sociais

coletivos, mas instâncias jurídicas: tribunais constitucionais, tribunais

nacionais, tribunais de arbitragem transnacionais. Em contrapartida, esses

estudos sobre o constitucionalismo transnacional sugerem que as fontes

clássicas do poder constituinte – revoluções sociais, sublevações políti-

cas, assembleias constituintes – passaram a desempenhar um papel (qua-

se) inexistente. De forma um tanto quanto exagerada, a tese por trás dessa

lógica pode ser extraída da seguinte forma: De demos ao direito. O poder

constituinte migrou dos processos políticos externos aos processos jurídi-

cos internos (THORNHILL, 2016, p. 103 e ss.; 2013, p. 554).

Essa, no entanto, é uma tendência muito problemática. As fun-

ções constitutivas e limitativas das constituições não podem ser realizadas

apenas por normas jurídicas. Elas são essencialmente executadas pela

reflexividade dos meios de comunicação social. Os tribunais não podem

criar “constituições vivas” por meios autoritários. O direito só adquire um

impacto subsidiário a esse respeito quando suporta e, no máximo, induz a

reflexividade nas instituições sociais. Seu papel é o de institucionalizar a

8 Os diversos aspectos da autossubversão constitucional são observados em KJAER et

al. (2011).

Teorias Contemporâneas do Direito 151

reflexividade do meio em diversos sistemas sociais, o que é realizado

pela prescrição de procedimentos autolimitadores e pela reinterpretação

das normas sociais como normas constitucionais. Ambos os movimentos

políticos e sociais, que procuram utilizar a constitucionalização pela lei, a

fim de combater tendências destrutivas na economia, na tecnologia, na

medicina ou em novos meios de informação, têm de ter em conta esse

potencial limitado do direito. Eles não serão capazes de concretizar a

desejada limitação desses sistemas por meio da intervenção jurídica externa.

Nesse ponto, uma das mudanças mais significativas na estrutura jurídica

que ocorre na transição rumo à sociedade mundial se torna visível. Niklas

Luhmann (1975, p. 63), descreveu essa mudança da seguinte forma:

[A]o nível da sociedade consolidadora mundial, as normas (sob a

forma de valores, regulamentos, propósitos) não mais orienta a pré-

seleção do cognitivo. Ao contrário, o problema da adaptação através

da aprendizagem ganha primazia estrutural, enquanto as condições

estruturais para a capacidade de aprendizagem de todos os subsiste-

mas têm de ser suportadas.

O melhor que os tribunais podem conseguir em relação às cons-

tituições sociais é a criação de “pressões de aprendizagem” para os siste-

mas sociais. Eles podem induzi-los, de forma salutar, à autossubversão.

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HÖFFE, Otfried. Vision Weltrepublik: Eine philosophische

,

no direito comercial uma

validade tácita é suficiente para a celebração de um contrato vinculante,

uma implicação semelhante à da iura imaginaria, que Giambattista Vico

já apontou como típica do direito romano6. As partes do contrato nem

mesmo precisam estar completamente cientes dessa implicação ou dessa

ficção: caso as negociações precedentes – seja de fato ou na percepção do

autor da carta de confirmação – tenham produzido uma relação contra-

tual, e caso essas negociações sejam preservadas na carta de confirmação,

então aquele que recebe a carta deve, em caso de omissão, submeter-se à

validade de seu conteúdo. A declaração de vontade é, nesse caso, “deri-

vada” da aceitação tácita da parte. Isso se aplica inclusive a um indivíduo

que participe pela primeira vez daquele tipo específico de relação contra-

tual, e que não esteja ciente de suas respectivas convenções.

2 O CONTEXTO HISTÓRICO-JURÍDICO

O exemplo do direito comercial demonstra que a relação entre

direito e conhecimento prático tem um papel que não pode ser negligen-

ciado na prática do direito. Mas observações mais precisas sobre essa

rede de referências têm sido negligenciadas – provavelmente devido à

prensa móvel e aos códigos dos Estados-Nação dos séculos XIX e XX.

De todo modo, a noção hoje disseminada é a de que o direito moderno

deve ser descrito como um direito “positivo”, autônomo: foi assim, afinal

de contas, que o regime jurídico pós-1800 rompeu com antigas ordens

normativas tais como a etiqueta, a moral, a convenção e o costume (o

coutume francês, e o Brauchtum alemão), e a partir daí exerceu sua auto-

ridade por meio de um sistema jurídico edificado nos institutos do Esta-

do-Nação: constituições escritas, doutrina jurídica, tribunais e faculdades

de direito. Kant já distinguia legalidade de moralidade, e relacionava essa

distinção a uma diferença entre o interno e o externo, associando a auto-

ridade do direito com uma força vinculante externamente. No início do

século XX, com a teoria pura do direito de Hans Kelsen, essa divisão

entre o interno e o externo dá origem à noção de uma ordem jurídica fe-

chada normativamente, sustentada em uma hierarquia interna (o Stufen-

bau da ordem jurídica), cuja validade é teoricamente presumida (como

Grundnorm – “Norma Básica”) e deve ser assegurada concretamente pelo

6 Ver VICO, Giambatista. The New Science of Giambattista Vico (1744). Trad. da 3.

ed. por Thomas Goddard Bergin e Max Harold Fisch. Ithaca: Cornell, 1976. p. 389.

Thomas Vesting 22

poder do Estado. Mesmo na teoria dos sistemas de Luhmann, esse legado

positivista permanece ativo. É verdade que Luhmann insiste que o siste-

ma jurídico fechado normativamente (ou seja, operacionalmente) – que

não deve mais ser analisado acima de tudo com base na sua estrutura

normativa, e sim com base na “produção de decisões” jurídicas – deva ser

“aberto cognitivamente”. Mas com a noção de um sistema jurídico cogni-

tivamente aberto, a relevância do conhecimento prático na ordem jurídica

é ainda assim reduzida ao status de “conhecimento factual”. Além disso,

de acordo com a premissa básica de Luhmann, esse “conhecimento fac-

tual” é absorvido pelo direito em decorrência das regras internas do sis-

tema jurídico, ao mesmo tempo em que a elas se conforma7.

Em oposição a essas noções de uma ordem jurídica normativa-

mente fechada e de uma legitimidade assegurada pela autoridade estatal,

minhas observações decorrem da percepção teórica de que o sucesso da

codificação do direito moderno não pode ser avaliado separadamente da

contextualização do direito em um “espaço discursivo e cultural” mais

amplo8. Parto, entretanto, não de uma crítica ao positivismo jurídico do

ponto de vista do direito natural, como foi feito, por exemplo, por Gustav

Radbruch, após o fim do regime nazista na Alemanha. Debates como esse

permanecem demasiadamente fixados na ideia de um direito “positivo”

autônomo. Em vez disso, meu objetivo é apresentar uma perspectiva his-

tórico-cultural (teórico-midiática) do direito moderno, que destaque a

forma como a normatividade do direito depende de um conhecimento

comum que permeie a matéria do direito, como uma “segunda natureza”.

O direito moderno já opera invariavelmente dentro de uma estrutura de

orientações culturais que o transcendem, “textos culturais” no sentido de

Aleida e Jan Assmann9, uma estrutura de “natureza vinculante” ou de

“autoridade vinculante” intensificadas (gesteigerte Verbindlichkeit); co-

mo, por exemplo, regras de comportamento social ou narrativas sobre

uma questão de interesse comum, que é parte da autoimagem de um gru-

7 Ver LUHMANN, Niklas. Law as a Social System. Oxford: OUP, 2004 (1993). p.

117. Para uma crítica ver LADEUR, Karl-Heinz. Kommunikation über Risiken im

Rechtssystem. Das Beispiel Nanotechnologie. In: BÜSCHER, Christian; JAPP, Klaus

P. (Ed.). Ökologische Aufklärung. 25 Jahre “Ökologische Kommunikation” .

Wiesbaden: Srpinger, 2010, p. 131 ff., 133 (diferentemente de Luhmann Ladeur, con-

ceitualiza a experiência como um conceito híbrido. Para ele, a experiência é um pro-

cesso que integra elementos normativos, práticos e cognitivos).

8 Esse termo é usado por BENDER, John B.; WELLBERY, David E. Die Entschränkung

der Rhetorik. In: ASSMANN, Aleida (Ed.). Texte und Lektüren. Perspektiven in der

Literaturwissenschaft. Frankfurt am Main: Fischer, 1996, p. 79 ff., 84.

9 Ver ASSMANN, Jan. Religion and Cultural Memory: Ten Studies (Cultural

Memory in the Present). Trad. Rodney Livingstone. Stanford: Stanford, 2005. p. 104.

http://cbsopac.rz.uni-frankfurt.de/DB=2.1/SET=2/TTL=1/CLK?IKT=4&TRM=Texte

http://cbsopac.rz.uni-frankfurt.de/DB=2.1/SET=2/TTL=1/CLK?IKT=4&TRM=Lektu%CC%88ren

http://cbsopac.rz.uni-frankfurt.de/DB=2.1/SET=2/TTL=1/CLK?IKT=4&TRM=Perspektiven

http://cbsopac.rz.uni-frankfurt.de/DB=2.1/SET=2/TTL=1/CLK?IKT=4&TRM=Literaturwissenschaft

Teorias Contemporâneas do Direito 23

po e, portanto, é parte também do “potencial expressivo” de indivíduos10.

Outro componente dessa estrutura de orientações culturais é um conhe-

cimento prático comum sem o qual não se pode conceber ações coorde-

nadas juridicamente. Após essa contextualização, desenvolverei o argu-

mento em três etapas. No capítulo sobre “epistemologia social”, introdu-

zirei alguns pensamentos sobre a fundamentação do conhecimento em

práticas sociais e formas de vida. Depois, darei uma dimensão histórica a

essas considerações, no capítulo intitulado “epistemologia histórica.”

Finalmente, irei propor um modelo que divide em três diferentes momen-

tos a estrutura de referência mutável entre o direito e o conhecimento

prático na história do direito moderno.

3 EPISTEMOLOGIA SOCIAL

Em contraste tanto com a teoria moderna do conhecimento, a

partir de Descartes, e com a tradição da filosofia analítica, a “epistemolo-

gia social” entende todas as práticas de conhecimento como inseridas em

um contexto social11. O conhecimento não é gerado internamente, dentro

de um sujeito isolado, por meio da percepção sensorial dos objetos do

mundo exterior, com base no pensamento lógico puro. Em vez disso, a

epistemologia social parte da premissa – que compartilha com a filosofia

do senso comum do Iluminismo escocês – de que a geração de conheci-

mento é ligada a uma atividade social de raciocínio e depende invaria-

velmente do conhecimento dos outros12. Se combinarmos esse modelo de

produção colaborativa de conhecimento com o processo de transferência

de conhecimento entre indivíduos e, ainda, com o problema de credibili-

10 Ver DESCOMBES, Vincent. Die Rätsel der Identität (Les embarras de l’identité).

Berlin: Suhrkamp, 2013. p. 231, que – assim como Cornelius Castoriadis – fala do

poder concebido institucionalmente em contraste com o poder constituinte e daqueles

que subordinam o último ao primeiro.

,

11 Para mais informações ver WILHOLT, Thorsten. Soziale Erkenntnistheorie. In-

formation Philosophie, 5, 2007, p. 46 ff.; ver também KRÄMER, Sybille. Media,

Messenger, Transmission. An Approach to Media Philosophy . Amsterdam:

Amsterdam, to appear in June, 2015, p. 223 ff.; e as contribuições de LOENHOFF,

Jens (Ed.). Implizites Wissen. Epistemologische und handlungstheoretische Perspek-

tiven. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft, 2012.

12 Ver REID, Thomas. Essays of the Intellectual Powers of Man. Dublin: Dublin,

1786, Essay I, v. I, Chap. VIII (Of social operations of mind); para mais detalhes so-

bre a relação entre os julgamentos morais e as relações sociais na obra de Adam Smith

(Reids’ predecessor) ver também RAPHAEL, David D. The Impartial Spectator.

Adam Smith’s Moral Philosophy. Oxford: OUP, 2007.

Thomas Vesting 24

dade, podemos então dizer, citando Sybille Krämer, que qualquer produ-

ção de conhecimento pressupõe “a circulação de atos de testemunho no

âmbito social”. Tal conhecimento “atestado” produz, por sua vez, o “solo

e o reservatório” de todas as práticas de conhecimento; isso certifica que

toda epistemologia é “uma epistemologia inteiramente social”13.

Para a epistemologia social, o conhecimento encontra-se distri-

buído em redes sociais de referência e não centralizado dentro de um

sujeito atribuidor de sentido. Portanto, o conhecimento não pode sim-

plesmente ser apropriado (por um único sujeito), e muito menos “consti-

tuído”, por ser altamente dependente de habilidades práticas e aptidões

pessoais. Todo conhecimento – desde a preparação de alimento à cons-

trução de casas, regras de conduta na família, formulação de normas para

a interpretação de textos jurídicos, ou as atividades de pesquisa científica

no laboratório – inclui um componente que não pode ser inteiramente

articulado ou que deve ficar subentendido desde o início. Esse componen-

te do conhecimento que não pode ser percebido imediatamente e que

talvez não possa ser percebido nunca é, hoje em dia, mais frequentemente

designado pelo conceito de “conhecimento tácito” ou “implícito”, um con-

ceito que remonta a Michael Polany, que atuou primeiro na Alemanha

como médico e químico e, posteriormente, na Inglaterra, como teórico da

ciência14. A ideia de Polanyi sobre o conhecimento tácito vem junto de um

estilo de pensamento que adota uma postura fundamentalmente crítica em

relação à subjetividade, de acordo com a qual a produção de conhecimento

ocorre invariavelmente dentro de um “aparato cultural da linguagem e da

escrita” e que “nos livra do absurdo da autodeterminação irrestrita”15.

Para Polanyi, o conhecimento implícito é um tipo de intuição

adquirida, manifestada tipicamente em um mestre artesão16. As habilida-

des de, digamos, um carpinteiro, a aptidão única que tem, a forma e o

acabamento de seus produtos – tudo isso depende tanto de um conheci-

13 Ver KRÄMER, Media, Messenger, Transmission, f. 9, p. 254, 257; ver também

AUGSBERG, Ino. Informationsverwaltungsrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 2014,

p. 80 ff.

14 Ver POLANYI, Michael. Knowing and Being. Essays by Michael Polanyi. Chicago:

Chicago 1969, p. 142 ff., 161 ff.; SCHÜTZEICHEL, Rainer. ‘Implizites Wissen’ in der

Soziologie. Zur Kritik des epistemischen Individualismus. In: Implizites Wissen, f. 9,

p. 108 ff., 112 ff; and RHEINBERGER, Hans-Jörg. Iterationen. Berlin: Merve, 2005,

p. 62 ff.

15 POLANYI, Michael. The Tacit Dimension. Gloucester (Mass.): Peter Smith, 1983. p. 91.

16 SCHÜTZEICHEL, ‘Implizites Wissen’ in der Soziologie. In: Implizites Wissen, f. 12,

p. 115; ver também KOGGE, Werner. Empeiría. Vom Verlust der Erfahrungshal-

tigkeit des ‘Wissens’ und vom Versuch, sie als ‘implizites Wissen’ wiederzugewinnen.

In: Implizites Wissen, f. 9, p. 31 ff.; RHEINBERGER, Iterationen, f. 12, p. 61-62.

Teorias Contemporâneas do Direito 25

mento implícito quanto de sua habilidade em transmitir seu ofício para

colegas e aprendizes. O conhecimento implícito, desse ponto de vista,

está sempre vinculado a práticas cotidianas; ele não pode ser explicitado

– pelo menos não sem alguma perda – e apenas pode ser ensinado e

transmitido de pessoa para pessoa17. Considerações similares já se basea-

ram na filosofia científica de Ludwig Fleck, no período entreguerras.

Especialmente pertinente, no nosso contexto, é a distinção que Fleck

traça entre “experiência” (Erfahrung) e “competência” (Erfahrenheit).

“Experiência” refere-se a uma dimensão cognitiva, à habilidade de ava-

liar e de julgar corretamente uma situação cotidiana, um trabalho ou um

objeto. Por outro lado, a “competência” permite que uma pessoa “incor-

pore, em certa medida, avaliações e julgamentos, durante o processo de

obtenção de conhecimento, ou seja, aprenda a pensar com mãos e ferra-

mentas”18. Converter aptidão e habilidade prática em um tipo de capaci-

dade natural é, entretanto, um processo que resiste a todas as formas de

controle racionalmente formuláveis. “A competência precisa ser aprendi-

da – isso lhe é inerente – e entretanto, ao mesmo tempo, ela excede aqui-

lo que pode ser aprendido, em um sentido explícito”19.

Tanto o “conhecimento tácito” de Polanyi quanto a “competên-

cia” de Fleck privilegiam o conhecimento prático em detrimento do cien-

tífico. Assim como teóricos da ciência que os sucederam, tais como Ian

Hacking e Bruno Latour, Polanyi e Fleck tentaram provar que nosso co-

nhecimento sustenta-se em forma concretas de vida e de atividade, que

realizam o trabalho de abrir o mundo para nosso conhecimento em um

sentido fundamental. Apenas com essa abertura, dizem os teóricos, que é

estabelecida a confiança no mundo – essencial para atuação social – e

apenas assim encontros entre o indivíduo e as coisas cotidianas tornam-se

possíveis20. De modo mais geral, o que eles propõem de inovador é que

17 Ver LADEUR, Karl-Heinz. Strategien des Nichtwissens im Bereich staatlicher Auf-

gabenwahrnehmung – insbesondere am Beispiel von Bildung und Sozialarbeit. In:

TWELLMANN, Marcus (Ed.). Nichtwissen als Ressource. Baden-Baden: Nomos,

2014; cita COLLINS, Harry. Tacit and Explicit Knowledge. Chicago: Chicago,

2010: “Não sabemos como funciona, nem tampouco os mecanismos através dos quais

os indivíduos recorrem a ele”).

18 RHEINBERGER, Iterationen, f. 12, p. 62.

19 Ibid., p. 62.

20 SCHÜTZEICHEL, ‘Implizites Wissen’ in der Soziologie. In: Implizites Wissen, f. 12, p.

114; ver também VATTIMO, Gianni. Beyond Interpretation: The Meaning of

Hermeneutics for Philosophy. Trad. David Webb. Stanford: Stanford, 1997. p. 108

(que fala sobre a ideia heideggeriana de um “destino do Ser” “articulado como a con-

catenação de aberturas dos sistemas de metáforas que tornam possível e qualificam

as nossas experiências do mundo”).

Thomas Vesting 26

“um saber como é sempre mais importante do que saber algo. Ações

pragmáticas gozam de prioridade epistemológica sobre a esfera de refle-

xão teórica”21. Hans-Jörg Rheinberger expressa a mesma reflexão da

seguinte maneira:

Na visão de Polanyi, o conhecimento tácito e o explícito coexistem

não apenas como duas formas de conhecimento em um mesmo plano.

Ele parte da primazia do conhecimento tácito e alega que todo conhe-

cimento – desde a ação cotidiana de andar de bicicleta até descober-

tas científicas – ou tem um componente tácito ou é, ao menos, enrai-

zado no conhecimento tácito. Para Polanyi, o conhecimento totalmen-

te articulado é uma das grandes – ainda que condenadas – ilusões da

filosofia analítica22.

O privilégio dado pela epistemologia social ao conhecimento

prático sustenta-se ainda no fato de o conhecimento explícito ser ligado a

uma forma particular de percepção, conhecida como “atenção focal”, que

por sua vez depende de uma outra, conhecida como “atenção subsidiá-

ria”. Quando alguém martela um prego em uma parede, sua atenção focal

está no

,

prego; sua atenção subsidiária, por outro lado, está no martelo.

Sem a ação do martelo, não haveria experiência focal e não haveria obje-

tos confiáveis23. Em outras palavras: nós entendemos as coisas “graças à

nossa familiaridade com toda uma rede interligada de ‘referências’

(Verweisungen) e ‘possibilidades interrelacionadas’”24. O martelo e o

prego não são, portanto, meros objetos, aglomerados de matéria nos quais

o sujeito atuante, por assim dizer, projeta retroativamente uma funciona-

lidade. As coisas são, em vez disso, originalmente caracterizadas por

nossa “capacidade de utilizá-las”25. A mesma metáfora ilustra como o

conhecimento explícito apenas torna-se compreensível com o pano de

fundo das habilidades práticas implícitas e de “totalidades situacionais”

invariavelmente já dotadas de significado.

21 LOENHOFF, Jens. Einführung. In: Implizites Wissen, f. 9, p. 16; SCHÜTZEICHEL,

“Implizites Wissen” in der Soziologie. In: Implizites Wissen, f. 12, p. 108 ff., 113 ff.

22 RHEINBERGER, Iterationen, f. 12, p. 63; ver também ONG, Walter J. Interfaces of

the Word. Studies in the Evolution of Consciousness and Culture. Ithaca and

London: Cornell, 1977. p. 45 (“a explicitude total é impossível”).

23 RHEINBERGER, Iterationen, f. 12, p. 63; ver também POLANYI, Knowing and

Being, f. 12, p. 138 ff.; ver também SCHÜTZEICHEL, “Implizites Wissen” in der

Soziologie. In: Implizites Wissen, f. 12, p. 116.

24 PIPPIN, Robert B. After the Beautiful: Hegel and the Philosophy of Pictorial

Modernism. Chicago: Chicago, 2014. p. 104.

25 Ibid, p. 104.

Teorias Contemporâneas do Direito 27

Todo conhecimento explícito está arraigado em uma rede de

conhecimento implícito; ele presume, retomando a terminologia de Sybil-

le Krämer, um conhecimento “atestado” ou “testemunhado” cuja estrutu-

ra é, em maior parte, oral ou pré-linguística e apenas pode ser apreendida

e transmitida por meio da escuta atenta, da observação, da imitação, da

experimentação, da prática etc.

4 EPISTEMOLOGIA HISTÓRICA

A epistemologia social acentua a elaboração social do conheci-

mento. A cognição é concebida na forma de um processo social, que

sempre pressupõe a priori um tipo de conhecimento que “o acompanha”

e que “nunca pode ser completamente apresentado e explicitado na co-

municação”26. Isso é verdadeiro em relação ao conhecimento como um

todo: não apenas em relação ao conhecimento cotidiano, prático. O conhe-

cimento científico contido nos textos, nos livros impressos e nas redes de

computador tem que ser entendido como algo arraigado em estruturas

socioculturais. Até mesmo o conhecimento científico incorpora elemen-

tos do contexto social e das normas culturais; ele nunca resulta de um

instrumental metodológico e conceitual puro proveniente do desempenho

consciente de um sujeito racional, como ainda é amplamente entendido

na teoria jurídica27. Além do mais, métodos e conceitos (jurídicos) devem

ser entendidos mais como experiências do que como formas de pensa-

mento capazes de constituir algo objetivo – como experiências que outros

tiveram e que, com o auxílio da escrita, pode-se estabelecer uma tradição

estável que não precisa ser constantemente aprendida repetidas vezes a

partir de novas experiências28.

O ponto decisivo para a epistemologia social é portanto “a ale-

gação de que a epistemologia não elege como objeto a connaissance de

um sujeito, e sim um processo de savoir ligado à estrutura de uma práti-

ca”29. O sujeito “não surge como o dono” dessa prática, mas apenas como

um “usuário temporário”30. Em vez da relação cognitiva do sujeito com o

26 LUHMANN, Niklas. Die Wissenschaft der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhr-

kamp, 1990. p. 122.

27 Ver JESTAEDT, Matthias. Hans Kelsen, Reine Rechtslehre. Einleitung in die

rechtswissenschaftliche Problematik. Tübingen: Mohr Siebeck, 2008. p. XI ff., XXXV.

28 Ver RHEINBERGER, Hans-Jörg. On Historicizing Epistemology. Stanford: Stan-

ford, 2010. p. 9, 41-42.

29 Ibid. p. 72.

30 Ibid.

Thomas Vesting 28

mundo, encontramos uma visão do conhecimento “como um processo

sempre implementado técnica e culturalmente”31. A epistemologia social

deve portanto ser pensada, mais precisamente, tanto como algo social

quanto como algo histórico. Além do argumento da construção sociocul-

tural de todo conhecimento, deve haver uma reflexão “sobre as condições

históricas nas quais, e os meios pelos quais, as coisas são transformadas

em objetos de conhecimento. Ela se concentra, portanto, no processo de

geração de conhecimento científico, e nas formas pelas quais ele é origi-

nado e mantido”32. Resumidamente, poderíamos dizer que o conhecimen-

to depende de “estilos de pensamento” e de “hábitos de percepção” que

não são condicionados por leis atemporais e sim por um processo de mu-

danças históricas e “irrupções internas inerentes” (Gaston Bachelard). E

uma vez que é esperado que tais mudanças e irrupções também ocorram

no futuro, todo conhecimento é mantido “em um estado permanentemente

inacabado”33.

5 O DIREITO E SEU CONTEXTO REFERENCIAL DE

PRÁTICAS INSTITUÍDAS

O direito moderno e o conhecimento prático que o acompanha

dependem de práticas instituídas que não são inteiramente susceptíveis à

influência e ao conhecimento conscientes. Toda operação jurídica formal

alude novamente a um universo de obrigações e convenções que não são

nem inerentes, nem assimiláveis por um direito “positivo” concebido de

forma autônoma. As leis (Gesetz) e o sistema jurídico (Recht) estão sem-

pre arraigados em uma “rede de ‘referências’ completamente interconec-

tada (Verweisungen) e em possibilidades inter-relacionadas”, que por

sua vez remetem a um “mundo prático de significação” e sua “familiari-

dade pré-proposicional”34. Assim como o direito comercial sempre pre-

31 RHEINBERGER, Hans-Jörg. An Epistemology of the Concrete. Durham and London:

Duke, 2010. p. 19.

32 RHEINBERGER, On Historicizing Epistemology, f. 26, p. 3.

33 Ibid., p. 32.

34 PIPPIN, After the Beautiful, f. 22, p. 104; ver também PIPPIN, Robert. The Persis-

tence of Subjectivity. On the Kantian Aftermath. Cambridge: CUP, 2005. p. 145

(“...não há obrigações naturais, originais; elas são sempre... resultados, compro-

missos... Essa é a essência da alegação de que não há uma experiência humana do

humano que seja natural ou pré-reflexiva; há em vez disso apenas a experiência hu-

mana implicitamente reflexiva, “negativa” a priori, ainda não completa e explicita-

mente reflexiva, se isso for considerado humano”).

Teorias Contemporâneas do Direito 29

sume que as convenções do comércio estejam de fato em vigor, o juiz

deve, a priori, falar um idioma e habitar um mundo semântico para que

possa interpretar um texto jurídico, ou proferir e fundamentar uma deci-

são. E uma vez que as práticas instituídas não apenas geram conhecimen-

to, mas também “compromissos, testemunhos, e confiança; sem os quais

o conhecimento é incapaz de conectar-se com qualquer coisa”35, a auto-

ridade da lei, a força vinculante da lei – o que o positivismo jurídico

chama de “legitimidade” – não pode ser gerado apenas por operações

jurídicas formais engendradas pelos sistemas que intervêm na sociedade,

pela atividade legislativa, por decisões da administração ou pela doutrina.

O direito moderno está intrinsecamente ligado à semântica lin-

guística e ao uso linguístico naturalizado – e somente esse uso nos remete,

por sua vez, à experiência prática anterior de natureza compartilhada. A

filosofia pragmática da linguagem de Wittgenstein acertadamente enfatiza

que nenhum processo linguístico de entendimento pode ser concebido na

ausência de um conhecimento comum a ele subjacente. “Deve haver con-

senso não apenas acerca de definições mas também (por mais estranho

que isso possa parecer) acerca dos julgamentos” para a

,

compreensão da

linguagem36. Essa formulação traz consigo muitas considerações. Ela signi-

fica nada mais, nada menos, que os participantes de uma comunidade lin-

guística devem agir de forma completamente sincronizada em relação ao

uso da linguagem, devem estar “mutualmente sintonizados de cima a

baixo”37. Toda capacidade de julgamento na linguagem depende de uma

sintonia recíproca, fundamental entre um grupo de pessoas; alicerçada nos

costumes, nos hábitos, e nas instituições que constituem uma forma de

vida. Esse sustentáculo de pressuposições pode também ser atribuído, co-

mo faz Hans Blumenberg, a uma “racionalidade” ancorada nas “formas de

vida”, uma racionalidade que, de acordo com Blumenberg, distingue-se

justamente por sua “falta de justificação” (Begründungslosigkeit)38.

35 LADEUR, Karl-Heinz. The evolution of the law and the possibility of a “global law”

extending beyond the sphere of the state simultaneously, a critique of the “self-

constitutionalisation” thesis. Ancilla Iuris, 2012, p. 220 ff., 250.

36 WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Ed. por G.E.M. Anscombe.

Oxford: OUP, 1953 (1945), § 242.

37 CAVELL, Stanley. The Claim of Reason: Wittgenstein, Skepticism, Morality, and

Tragedy. New York: OUP, 1999. p. 32 (destaque no original).

38 Ver BLUMENBERG, Hans. Theorie der Lebenswelt. Ed. por M. Sommer. Berlin:

Suhrkamp, 2010. p. 90. A análise de Wittgenstein sobre a autoridade de seguir regras in-

dica também a imagem de uma subjacência consolidada. Aqui, da mesma forma, o foco

é na habilidade prática, um comportamento governado por normas, das quais não estão

cientes as pessoas que as seguem. “Quando sigo uma norma, eu não escolho. Eu obede-

ço à norma cegamente”. WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, f. 34, § 219.

Thomas Vesting 30

Isso significa que todo o conhecimento explícito das normas ju-

rídicas – a atividade legislativa, a jurisprudência e a doutrina – é ligado a

critérios que devem ser considerados válidos de modo generalizado, e que

se deixam teorizar apenas a posteriori. Isso é exemplificado na herme-

nêutica jurídica. O conhecimento hermenêutico-jurídico explícito pode

ser canonizado na forma de normas para interpretação e argumentação,

com o propósito de estabelecer uma orientação profissional comum para

a explicação dos textos jurídicos. Mas a essência da hermenêutica jurídica

não é de modo algum comprometida com uma metodologia jurídica, a

metodologia transmitida por meio da educação profissional dos juristas.

A interpretação juridicamente disciplinada deve, na verdade, participar

necessariamente da reprodução de uma rede intertextual de referência e,

desse modo, participar da sustentação de um mundo pragmático do direi-

to. Mundo esse que, por sua vez, não pode ser separado do contexto e das

normas culturais que o circundam, incluindo suas múltiplas e respectivas

histórias: da linguagem, da moral, dos costumes, dos hábitos, das con-

venções etc. Quando o parágrafo 185 do código penal alemão criminaliza

a injúria e a difamação, o texto impresso faz referência a um código de hon-

ra não escrito, cuja validade e eficácia na vida social quotidiana devem ser

presumidas. Em outras palavras, a invocação jurídica da calúnia e a busca

de critérios sob a luz dos quais o juiz possa dizer que esta ou aquela declara-

ção é caluniosa aos olhos da lei pressupõe um conhecimento comum, uma

“convergência de julgamentos” acerca da injúria e da difamação.

Podemos, portanto, assim como Karl-Heinz Ladeur, partir da

premissa de que o conhecimento prático “sempre se sustenta em uma

situação historicamente variável de correspondência contextual e de

referência à conceitos jurídicos, sem os quais não teria utilidade”39. O

direito “positivo” moderno, do mesmo modo, remete ao conhecimento, às

morais, aos costumes, aos hábitos, às convenções etc; e toda a essa estru-

tura de referência entre o direito e as práticas instituídas pode ser conce-

bida apenas como algo dependente do contexto e do tempo, assim como a

epistemologia histórica e social. Devemos, portanto, presumir também

que toda a estrutura do direito e do conhecimento prático passam por

processos históricos de transformações, mudanças de significado, e alte-

rações no “estilo de pensamento.” Se nos limitarmos ao direito moderno e

à sua conexão com a prática instituída (deixando de lado a relação entre o

direito e o conhecimento comum na Idade Média e na Antiguidade)40,

39 LADEUR, Karl-Heinz. Strategien des Nichtwissens. In: Nichtwissen als Ressource,

f. 15, p. 103, ff., 108 (Fn. 20).

40 Sobre essa dependência, no caso da democracia ateniense, ver: OBER, Josiah. De-

mocracy and Knowledge. Innovation and learning in classical Athens. Princeton:

Teorias Contemporâneas do Direito 31

podemos distinguir três “estilos de pensamento” ou “hábitos de percep-

ção”: um burguês-liberal, um grupo-pluralista, e uma cultura em rede.

Essas distinções não buscam traçar uma progressão histórica, mas servem

para esboçar uma imagem mutifacetada das estruturas diversas, interco-

nectadas e conflitantes do direito e do conhecimento, nas quais a história

não é somente aquilo que passou, mas mantém-se presente na cultura

jurídica da modernidade41.

6 O CONHECIMENTO COMUM ACESSADO PELA

EXPERIÊNCIA

No centro da cultura burguesa-liberal situa-se uma noção de es-

tado de direito, remetendo ela própria a um conhecimento (implícito),

amplamente reconhecido, amplamente compartilhado. A noção de estado

de direito, na Alemanha, deve sua força sobretudo à ganância desmedida

da monarquia. Foi contra isso que os juristas se rebelaram, com uma

estratégia de reduzir as prerrogativas do rei em prol da objetividade im-

pessoal dos textos jurídicos42. Savigny já havia relacionado o direito “po-

sitivo” e o Volksgeist – ou “espírito do povo” – com sua instância de au-

toridade, ou seja, uma força vinculante invisível e não-corpórea; e retratou

os próprios juristas burgueses, com seu direito abstrato, como represen-

tantes e porta-vozes desse espírito. No final do século XIX, os juristas se

concentraram cada vez mais no direito positivo e, em última análise, nos

manuais de direito ou nos códigos como ideais de textos jurídicos43. A

disseminação dos manuais de direito (Gesetzbuch) é indissociável do

Princeton, 2008; EZRAHI, Yaron. Imagined Democracies. Necessary Political Fic-

tions. Cambridge: CUP, 2012.

41 A favor desse modelo sobre as culturas dos indivíduos, RECKWITZ, Andreas. Das

hybride Subjekt. Eine Theorie der Subjektkulturen von der bürgerlichen

Moderne zur Postmoderne. Weilerswist: Velbrück, 2010; para teoria jurídica ver.

LADEUR, Karl-Heinz. Die Netzwerke des Rechts und die Evolution der “Gesell-

schaft der Netzwerke”. In: BOMMES, Michael; TACKE, Veronika (Ed.). Netzwerke

in der funktional differenzierten Gesellschaft. Wiesbaden: VS, 2010. p. 143 ff.

42 Ver, de modo geral, KOSCHORKE, Albrecht. Vom Geist der Gesetze. In: GAMPER,

Michael (Ed.). Kollektive Gespenster: die Masse, der Zeitgeist und andere unfaßbare

Körper. Freiburgi: Rombach, 2006. p. 29 ff.; ASSMANN, Aleida. Einführung in

die Kulturwissenschaft. Grundbegriffe, Themen und Fragestellungen. 3. ed. Berlin:

Erich Schmidt, 2011. p. 116-117.

43 AUGSBERG, Ino. Diesseits und jenseits der Hermeneutik – Was heißt Textuales

Rechtsdenken?. In: VESTING, Thomas; LÜDEMANN, Susanne (Ed.). Was Heißt

Deutung?. München: Wilhelm Fink, no prelo, previsto para 2017.

Thomas Vesting 32

aumento da atividade legisladora por parte do Estado-Nação em ascen-

dência. O direito está agora comprometido apenas com a utilidade co-

mum e não é mais legitimado pela tradição e pela sanção divina. Nesse

sentido, até mesmo o estado monárquico pôde fazer avançar o direito,

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